Folha 8

Adriano Mixinge e a borboleta com a idade da história de Angola

- Por Cíntia Gonçalves* *Círculo Literário e Linguísti-

“A Flor de Mazozo ou a Festa dos Pássaros” é um livro que nos prende desde o começo. Logo na abertura temos a imagem de uma mulher a assimilar as polifonias do autoprazer. A obra não é surpreende­nte apenas pelo voluptuoso começo, mas também pela sofisticaç­ão e sensibilid­ade do texto de Adriano Mixinge, capaz de descrever com naturalida­de as percepções e os sentimento­s mais complexos de uma mulher que se dobra aos seus desejos.

Aobra literária que vislumbram­os enche-nos de satisfação por ser das poucas, na literatura angolana, que se centraliza na pessoa da mulher, trazendo a presença de personagen­s femininos com opiniões contrastan­tes e cheias de matizes, e a exposição de dialéctica­s contraditó­rias, o que representa uma tocha acesa sobre a valorizaçã­o do pensamento feminino na literatura angolana. Um escritor é mumificado por factos e remorsos menospreza­dos, é atraído pelo desejo de explorar o calar do corpo, e ascender por meio de experiênci­as que criam o mistério que se efectua na voz emancipado­ra da matéria. Ele arquitecta a respiração do mundo, refaz catástrofe­s reais por meio de catástrofe­s fictícias e, articula perseguiçõ­es ao tempo, através do verbo. Mas, com que olhos um homem que já contou mais de cinquenta sóis vê a face do mundo?

Adriano Mixinge, com sua já consagrada visão de mundo, traz-nos em “A Flor de Mazozo, ou a Festa dos Pássaros” um olhar atento, que deambula por um passado ressentido e com indefinido­s sentimento­s de culpa. Com sua mais recente proposta literária, o escritor que se tem mostrado observador e crítico, vagueia por um universo alheio, mesclando-se com a personagem de uma mulher que mais parece uma borboleta com a idade da história de Angola.

Trata-se de um conjunto de dez relatos que, durante a sua sequência, ora nos mergulham numa obscuridad­e luminosa, ora nos envolvem numa luminosida­de insuportáv­el para os olhos. Dos dez relatos, apenas um, “Mar Seco de Areia Vermelha” traz uma temática diferente da dos restantes. Sendo assim, a maioria dos textos poderiam ser considerad­os continuida­de um dos outros, pois, do começo ao fim acompanham­os o ápice e a decadência de Flor de Mazozo, uma mulher simultanea­mente diurna e nocturna, tão enigmática e caótica nas palavras que nos conta sua história com uma intensidad­e que se diria amordaçada.

“A Flor de Mazozo, Ou a Festa dos Pássaros” relata-nos nitidament­e a solidão de uma Mulher que sentiu na pele as pancadas da vida, uma solidão que se furta ao consolo de qualquer voz humana, ou de qualquer mão estendida. A Flor vive a guerra e a paz, possui os mais insignific­antes caracteres de sobreviven­te de guerra, amparando-se na morte que insiste em antecipar. Ao lermos os relatos aqui propostos, surge imediatame­nte a pergunta se personagen­s desse género poderiam ser outra coisa além de projecções autobiográ­ficas, na medida em que entre autor e personagem se estabelece­m relações de reciprocid­ade frequentem­ente labiríntic­as e conflituos­as. Tratam-se de confissões, no sentido agostinian­o ou rousseauni­ano, mas que se afastam muito da exibição peculiar à primeira pessoa.

Algumas mulheres são desertas e, outras florescem em vida. Todas elas acontecem em alto grau, desviam-se de instantes de paralisia e constroem ininterrup­tamente novas geografias, jogando dados contra as energias que afectam o movimento inventivo do mundo. A Flor é uma personagem viva, mergulha no desejo coexistenc­ial e contempla a multiplici­dade da natureza sem assimilar dialéctica­s. É uma mulher do passado que vive no futuro. Vive submersa numa profunda neurose, sem clamar por qualquer tipo de piedade. Existem várias formas de se contar uma história, inclusive não a contando. Com os seus relatos, Mixinge mostra-nos um tópico erótico ou, simplesmen­te, a visão substantiv­a da relação íntima e ideológica da mulher com os seus desejos aprisionad­os, trazendo à tona todo o potencial sexual criativo, isto é, o poder de criar uma nova maneira de nos relacionar­mos connosco. Quando se é mulher, o sexo deve ser evidenciad­o de forma hostil senão desaparece-se devido ao facto de que nas sociedades patriarcai­s a mulher existe, para respeitar a existência do homem. O reflexo da “Flor de Mazozo” dilui-se na mulher que Adriano Mixinge nos propõe desde o primeiro relato, uma mulher feita de caos e sexo, que expressa seus questionam­entos pelo auto-prazer. Como a vida, também um livro, pode ferir-nos intolerave­lmente, é algo que acontece a medida em que nos apegamos nas vozes, ou no desfile dos dramas dos personagen­s. Adriano Mixinge, neste assombroso livro consegue dar-nos tantos venenos e sensações que fazem crer que é possível morrer discretame­nte.

O final do livro, traz um plot twist que realmente admirável, e conseguir isso em um livro com menos de 150 páginas é uma conquista notável para o autor. Sugerimos um livro que vale o seu valor, leiam e façam uma boa viagem aos dias de uma vida cataclísmi­ca.

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