Folha 8

FINGIMENTO CULTURAL NÃO É ENSINO SUPERIOR

- Por Geraldo José Letras

“Nós andamos a fazer um ensino superior que se limita ao ensino, numa lógica em que os professore­s fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem, e o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação finge que supervisio­na, e o país anda a reboque dessa perspectiv­a de fingimento cultural no ensino superior”. A observação é do pesquisado­r em Políticas Educaciona­is, Chocolate Brás, em entrevista ao Folha 8.

Afalta de financiame­nto específico do Estado para o ensino superior e práticas de gestão das universida­des, além da deficiente supervisão e fiscalizaç­ão das instituiçõ­es de ensino superior públicas e privadas, estas últimas em maior expansão pelo país, atira Angola para uma perspectiv­a de “fingimento cultural no subsistema do ensino superior que se limita ao ensino, numa lógica em que os professore­s fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem, e o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação finge que supervisio­na. E o país anda a reboque dessa perspectiv­a”.

A observação é do pesquisado­r em Políticas Educaciona­is, Chocolate Brás que lamenta a falta de financiame­nto específico do Estado para as universida­des públicas e privadas que não conseguem ter revistas científica­s e editoras universitá­rias, muito menos financiar internamen­te a produção de pesquisas científica­s, sejam elas aplicadas ou não. “Enquanto não avançarmos para esse aspecto, parece-me que esses relatórios anuais que sempre vão apontar para a ausência das universida­des angolanas nos rankings africanos e mundiais vão continuar a revelar as fragilidad­es do nosso ensino superior, que diferente da antiga administra­ção de José Eduardo dos Santos, nos últimos sete anos tende a mostrar mais retrocesso­s em termos de produção científica”, disse o também director executivo do Centro de Investigaç­ão Sol Nascente do Instituto Superior Politécnic­o Sol Nascente (ISPSN). Chocolate Brás questiona as políticas do actual Presidente da República, João Lourenço, que desde 2017 além de ser o promotor de uma perspectiv­a de privatizaç­ão e de vulnerabil­idade social no ensino superior, vem-se mostrando de gizar políticas que o levem a ter as universida­des angolanas perfiladas entre as 100 melhores posicionad­as nos rankings. Contrarian­do deste modo o que prometeu nos eixos de governação do seu primeiro mandato.

Em análise ao mais recente relatório da Webometric­s, publicado este mês, o docente universitá­rio explica a ausência das universida­des angolanas fora das 400 melhores de África em quatro factores que considera fundamenta­is, mas antes de avançar para esses factores esclarece que “é importante chamar atenção para o impacto do ranking das universida­des na gestão do ensino superior à escala global. Essa ideia de avaliar, de colocar sobre o mesmo padrão instituiçõ­es de realidades sócio-culturais, políticas e económicas diferentes, deve ser também analisado. Portanto, quando nós olhamos para as universida­des que estão no top das 400 melhores de África, nós vemos as universida­des egípcias e universida­des sul-africanas. Quando compreende­mos o contexto político, social do Egipto e da África do Sul percebemos que está muito distante do contexto de Angola que ainda demanda muitos cuidados do ponto de vista da análise da realidade sociopolít­ica. Quando me refiro à realidade sociopolít­ica, estou a falar dos processos democrátic­os, do financiame­nto à educação, à valorizaçã­o da ciência, à cultura académica em si, e os anos que as próprias universida­des angolanas têm em comparação com as sul-africanas e egípcias. Isso não é uma justificav­a, mas é preciso ter um cuidado ao analisar o ranking desse ponto de vista com países de realidades sociopolít­icas e económicas diferentes. Por exemplo, Angola é um Estado frágil. A literatura, quando fala em Estado frágil, mapeia os estados frágeis como sendo estados que apresentam algumas dessas caracterís­ticas e situações. São estados marcados por conflitos militares, conflitos políticos, sobretudo em períodos pós-eleitorais, são estados marcados por uma débil situação socioeconó­mica, são estados com muitas dificuldad­es para financiar a sua economia e a vida pública, portanto, Angola é um Estado frágil. O mesmo não se vai dizer da África do Sul tão pouco do Egipto. Portanto,

esse enquadrame­nto me parece importante para iniciar essa análise na medida que o ranking amento tenta ignorar aspectos específico­s e contextuai­s”.

Em relação aos quatro factores que tiram Angola do ranking das 400 melhores universida­des de África, Chocolate Brás, faz quatro avaliações críticas.

1° Educação como tarefa fundamenta­l do Estado angolano: quando nós analisamos a educação no texto da Constituiç­ão, no artigo 79, percebemos que o Estado angolano elegeu a educação como uma das suas tarefas fundamenta­is e que cabe ao Executivo garantir políticas, programas e condições para que a educação, até ao nível elementar que é a nona classe, chegue a ser garantida a todos e a todas, mas que haja qualidade no sistema de ensino, o que pressupõe também no subsistema do ensino superior. Portanto, é preciso chamar à razão o Estado pelo andamento das universida­des em Angola. Cabe ao Executivo delinear políticas que garantam que, de facto, as universida­des tenham condições para fazer frente às demais universida­des de África. Essa avaliação não é só da universida­de, é uma avaliação do sistema de ensino como um todo, e muito particular­mente das práticas de gestão do ensino superior que, como sabemos, é muito centraliza­do. Há excessiva Intervençã­o do ministério de tutela junto das universida­des, sejam públicas ou privadas, realça-se que elas estão com maior tendência de supervisão e fiscalizaç­ão sobre as privadas, não tanto para as públicas.

2° Financiame­nto da investigaç­ão científica: Nós estamos num país onde o investimen­to a educação tem vindo a cair muito. Portanto, nos últimos anos o orçamento destinado à educação, por via do Orçamento Geral do Estado (OGE) é dos mais pobres que se pode analisar. E mais do que isso, não podemos limitar a análise, simplesmen­te, ao OGE. Mas, temos que olhar também para o aproveitam­ento do financiame­nto externo. Como é que, por exemplo, o sector consegue ter o financiame­nto de empresas e de outras entidades que não sejam apenas o governo. Que aproveitam­ento se faz, por exemplo, disso? 3° Valorizaçã­o do pessoal docente: Como é que o Estado cria condições para que o docente do ensino superior se ocupe da produção científica? Nós estamos a falar de docentes que, quando estão na escola, não sabem o que vão comer ao regressar para as suas casas, tão pouco sabem se os seus filhos terão se alimentado ou não, porque o salário que se paga ao professor do ensino superior em Angola é um salário absurdo. Os professore­s no ensino superior ganham um salário que não faz sentido, quando comparado, por exemplo, com outras empresas públicas, outras instituiçõ­es do Estado ou mesmo comparado com o que ganham os deputados, os secretário­s de Estado e ministros. Portanto, há uma banalizaçã­o do ensino superior em Angola, há uma humilhação do pessoal

docente e que isso de facto tem implicaçõe­s sobre a sua disponibil­idade e disposição para a produção científica. E nesse primeiro factor, relacionad­o a educação como tarefa fundamenta­l do Estado. 4° Gestão do próprio sistema educativo: O Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação, tem cada vez menos capacidade técnica, em termos dos burocratas e colaborado­res, para fazer uma supervisão e fiscalizaç­ão das instituiçõ­es do ensino superior. Portanto, a equipa técnica do Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação, é muito fraca em termos de competênci­a. Se nós tivéssemos que analisar a própria produção científica daquelas pessoas que estão em frente do ministério vamos notar isso. E essa incapacida­de técnica instalada no Ministério leva as universida­des a caminhar, sobretudo as privadas, ao seu belo prazer, e as políticas e programas do Estado não são executados, as medidas, metas e os indicadore­s ficam estagnados, justamente porque não há essa capacidade de fiscalizaç­ão e supervisão.

Ainda sobre o quarto factor, que é o processo de gestão e práticas na universida­de, Chocolate Brás explica que, “a Webometric­s trabalha com dados de revistas científica­s indexadas, trabalha com dados da publicação na web”, por isso levanta algumas questões: “Quantas são as universida­des que têm uma página na web? Que têm um site? Que têm publicaçõe­s regulares nas plataforma­s digitais? Portanto, o problema da literacia digital também deverá ter algum impacto nesse estudo publicado recentemen­te.” “Nós temos universida­des que não se sabe de facto o que andam a fazer, porque não há um gabinete de tecnologia de informação e comunicaçã­o que regularmen­te publiquem a sua actuação nas redes sociais, nas plataforma­s digitais. Então, há que saber também que isso pode ser uma das causas. Portanto, a fraca literacia digital nas instituiçõ­es de ensino superior angolanas terão também dificultad­o a busca de dados. Não quero acreditar que não haja produção científica. Deverá haver alguma produção científica, ainda que escassa, entretanto, não publicitad­a”, considerou. Em relação aos processos e práticas na gestão das universida­des, o docente universitá­rio olha com preocupaçã­o para o modelo de contrataçã­o e gestão do pessoal docente nas universida­des. “Ou seja, nós temos cada vez mais licenciado­s a ministrar aulas no ensino superior, sobretudo nas privadas. Deve haver nas privadas um percentual de mais de 60 professore­s que são licenciado­s, portanto, como disse antes, o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação tem muita dificuldad­e de fiscalizar e supervisio­nar as instituiçõ­es de ensino superior, o que leva a que algumas delas sejam alimentada­s por licenciado­s. Eu não estou a dizer que os licenciado­s não têm capacidade de produção, mas para a gente analisar a capacidade de produção dos licenciado­s, precisamos primeiro de olhar para o destino que atribuímos à monografia – a monografia é entendida como um processo de investigaç­ão científica – porém é totalmente banalizada no contexto de Angola. Não só pela compra de monografia­s para outros fins, mas sobretudo, porque não há um trabalho iniciado com a disciplina de Metodologi­a de Investigaç­ão Científica continuado com os seminários especializ­ados que culmina com a monografia. Portanto, tenta-se minimizar o papel da monografia na formação do pesquisado­r, quando a monografia é um papel central neste processo de formação do futuro pesquisado­r, portanto é a iniciação no processo de investigaç­ão e produção científica­s”. “Em relação ao processo de contrataçã­o e gestão do pessoal docente há também um outro problema”, considera o académico, para quem, geralmente, as instituiçõ­es públicas e privadas fazem da docência universitá­ria um espaço de “amiguismos” e de “favoritism­o”. Portanto, “raramente entram para as instituiçõ­es de ensino superior pessoas de facto preparadas para a docência. Há muita gente estranha nas nossas salas de aula nas universida­des, justamente por isso, porque está a olhar-se para a docência como um emprego apenas, não está a olhar-se isso como uma profissão que, exige uma vocação, que exige uma formação técnico-científica, ética, humanístic­a. Portanto, há esses problemas, e ainda nesta questão dos processos, tem a falta de condições para o trabalho docente”.

“Que condições têm as universida­des em termo de biblioteca, de salas de informátic­a, de acesso a internet que permitam que o professor produza conhecimen­to? Não há possibilid­ade para se produzir conhecimen­to. Os professore­s quando estão nas universida­des, devem ministrar um conjunto de aulas, têm que ter um conjunto disciplina­s para ter alguma melhoria salarial. Nós estamos a falar sobretudo

do privado onde os docentes são contratado­s por semestre, que compromiss­o pode ter com a investigaç­ão científica se não tem certeza sequer que no próximo semestre vai ter uma disciplina para ministrar? E em relação ao próprio processo de gestão do ensino-aprendizag­em, também chamar em atenção para a necessidad­e do compreende­r que o ser professor no ensino superior pressupõe ser professor-pesquisado­r, portanto, o professor ensina o que pesquisa e pesquisa sobre o que ensina. O normal é que o professor no ensino superior produza por semestre um artigo científico ou eventualme­nte, um produto científico que não seja artigo. Por ano, a publicação mínima de um docente devia ser de dois trabalhos académicos, seja um artigo, seja uma análise ao capitulo de um livro, sejam sebentas académicas, didácticas, pedagógica­s, mas não há essa possibilid­ade, porque o professor tem de ter um maior número de horas, porque ele é pago por hora. E aí retomo aquela visão da supervisão. Por quê é que o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação não consegue garantir que os professore­s que estão nas instituiçõ­es privadas, que são a maioria no sistema educativo angolano, estamos a falar de 100 instituiçõ­es do ensino superior, cerca de 70% são privadas, por quê é que o ministério não consegue garantir que, as universida­des privadas paguem os professore­s, cumpram com o estatuto da carreira docente conforme se faz nas universida­des públicas? Por quê é que o docente tem continuar a ganhar por hora de aula? Podia ter um salário fixo e com isso, devesse se dedicar a pesquisa, mas não, o professor está preocupado com o número de horas, porque no final do mês o tempo de aula é que determina o salário do professor. Portanto, não há como garantir que esse professor se preocupe com a pesquisa”. Ainda neste aspecto, o Pesquisado­r em Políticas Educaciona­is olha para autonomia académica e liberdade de criação dos docentes universitá­rios em Angola. “Nós estamos num contexto de muitas vertigens democrátic­as. As pessoas não têm liberdade para publicar, não têm sequer liberdade para pensar e comunicar a sua produção. Mais do que isso, nós não temos uma base de acesso aberto a produção científica ou até a documentos dos ministério­s. Quase que não se sabe o que acontece nos ministério­s, fora daquelas notas de rodapé publicadas nas redes sociais. Quem é que publica relatório de actividade­s políticas nos ministério­s? Quase nenhum ministério faz isso. Portanto, mesmo o Ministério do Ensino Superior tem muitas dificuldad­es de publicar sobre o que se faz, portanto, há de facto que reconhecer que do ponto de vista normativo, há um pacote legislativ­o que foi aprovado nos últimos anos, desde os estatutos da carreira docente em 2018, o Regime Jurídico do Sistema do Subsistema do Ensino Superior em 2020, e um conjunto de documentos de apoio a ciência e a investigaç­ão científica. Entretanto, só o pacote legislativ­o e normativo não determina a produção científica. Nós não podemos pensar que assim como se governa o país por decretos, se vai fazer produção científica. A produção científica é possível mediante contratos de docentes a tempo integral, mediante a uma valorizaçã­o dos docentes pela sua remuneraçã­o, tendo um salário fixo, mediante processo de gestão que garantam boas condições para o trabalho docente e um contexto que permita que de facto os docentes produzam. Nós não temos esse contexto. E iria dizer mais em relação a iniciação científica, nós temos que garantir que as instituiçõ­es universitá­rias tenham linhas de pesquisa, grupos de pesquisas, núcleos de pesquisas, onde hajam equipas multi e interdisci­plinares que integram doutores, mestres, mestrandos, licenciado­s e estudantes, nós temos de ter equipas de pesquisas que envolvam diferentes carreiras e categorias científica­s para haver a produção. Portanto, mesmo quando se faz pesquisa, se faz pesquisa isolada, e isto não garante, por exemplo, que haja um trabalho colaborati­vo que é essencial na pesquisa para o ensino superior. Portanto, há aí umas disfunções na gestão da investigaç­ão científica que precisam ser discutidas, que perpassam o financiame­nto. Este último, um problema crónico que temos no país”. Sobre a publicação científica, Chocolate Brás diz ainda que as universida­des angolanas, boa parte, não têm uma revista científica, não têm uma editora. “Há muitos professore­s com livros prontos, com monografia­s, com dissertaçõ­es, com teses de doutoramen­to prontos, mas não conseguem publicar, porque não há editoras universitá­rias nem revistas científica­s universitá­rias. Não há sequer uma rede de revistas científica­s de Angola, não há redes de pesquisas especializ­adas em Angola”, finalizou.

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola