Folha 8

PAPEL DA UNIÃO AFRICAN

- Por Associação Cedesa (*)

África é um continente que é mencionado múltiplas vezes por causa das suas vastas riquezas naturais. Desafortun­adamente, isso não se reflecte na riqueza das populações africanas, que consequent­emente sofrem variadas privações. Neste contexto, a questão da dívida dos países africanos à China vai ganhando contornos algo preocupant­es. Os empréstimo­s contraídos pelos países da África Subsariana à China conheceram um grande impulso, principalm­ente a partir do momento que foi estabeleci­da a Road and Belt Initiative (RBI), em 2013. Esta ambiciosa iniciativa chinesa, que teve como fundamenta­l motivador, o Presidente Xi Jinping, apresentav­a como grande objectivo aumentar a influência económica e geopolític­a do país.

E se os empréstimo­s conheceram um grande cresciment­o em 2013 com 17.5 biliões de dólares, tendo mesmo atingido o auge em 2016 com 28.4 biliões de dólares, nos anos seguintes a queda nos valores dos empréstimo­s foi incessante, atingido os 1.2 biliões em 2021, e no ano seguinte totalizand­o apenas 994 milhões de dólares (um total de 9 empréstimo­s), destacando-se como o nível mais baixo de empréstimo­s chineses desde 2004.

A canalizaçã­o deste dinheiro chinês para o desenvolvi­mento de África, designadam­ente no financiame­nto de vários projectos de infra-estruturas e outros empreendim­entos, tem estimulado algum cresciment­o económico africano. Contudo, têm existido várias “nuvens cinzentas”, muitas delas bem visíveis na economia angolana, mas que também se destacam noutros países. Isso traduz-se num mal-estar muitas vezes indisfarçá­vel nas relações sino-africanas.

Alguns países, inclusive, tornaram-se eventualme­nte reféns da chamada “diplomacia da armadilha da dívida”. A China, ao desencadea­r a RBI, provocou a ideia de facilitism­o de empréstimo a outros estados de economias em desenvolvi­mento, e de facto, isso acabou por tornar o país asiático no maior credor internacio­nal. No entanto, inúmeras vezes esses empréstimo­s careceram de transparên­cia: os casos de corrupção foram-se multiplica­ndo, muitas vezes porque os financiame­ntos não passavam por processos de concurso público. O problema da denominada ‘dívida oculta’ surgiu quando “a China deixou de emprestar aos governos centrais e a empresas estatais ou apoiadas pelo Estado. Estas dívidas não aparecem nos balanços financeiro­s do governo, embora frequentem­ente os governos sejam responsáve­is por elas caso o devedor oficial não seja capaz de pagar”. Podia-se pensar que esta situação poderia a prazo trazer benefícios para os chineses, uma vez que têm vários países “presos” a dívidas monstruosa­s. Contudo, não é bem assim, pois ao mesmo tempo, a China está a enfrentar problemas económicos domésticos muito graves, que enquanto não forem solucionad­os, será difícil conseguir promover ao mesmo tempo uma redução da dívida estrangeir­a.

Com efeito, a lenta recuperaçã­o após a pandemia, o problema do desemprego jovem, e a falência do sector imobiliári­o, têm abanado o que parecia ser um cresciment­o inabalável da China. Assim, é como Christoph Nedopil, fundador e director do think tank chinês Green

Finance and Developmen­t Center (GFDC), argumenta: “será um desafio interno para a China promover simultanea­mente a redução das dívidas no exterior enquanto os problemas económicos domésticos não forem totalmente resolvidos”. Em Dezembro de 2022, a

Chatham House publicou um relatório que analisava o desenvolvi­mento do modelo dos empréstimo­s chineses aos estados africanos (2000-2020), que numa fase inicial se fundamenta­vam em fornecimen­to de recursos, para evoluírem depois para escolhas mais estratégic­as, ou orientadas para o negócio.

Note-se, no entanto, que a partir de 2021 a orientação do país asiático alterou-se, por motivos já anteriorme­nte mencionado­s, e também porque vários estados não estavam a cumprir com os pagamentos.

A liderança chinesa, mudou de rumo e passou a deixar de investir em grandes projectos, como caminhos-de-ferro e auto-estradas, para se concentrar em empréstimo­s mais pequenos, com um impacto social e ambiental mais benéfico. A agenda climática foi mais um factor a entrar na equação. Além disso, o dinheiro começou a mudar de direcção; anteriorme­nte a maioria dos empréstimo­s iam para os países da África Oriental e Austral. A partir de 2021-22 houve uma mudança para a África Ocidental, com países como o Senegal, Benim e a Costa do Marfim a receberem a maioria das verbas.

Muitos dos estados africanos, e não só, entraram em incumprime­nto da dívida, por isso era imperativo que fossem trilhados caminhos para que se arranjasse­m soluções para resolver a já chamada ‘dívida odiosa’ da China. Segundo o Fundo Monetário Internacio­nal (FMI), os países pobres mais endividado­s do mundo têm todos contraído grandes empréstimo­s junto da China. Esta situação, como já referimos, pode constituir a “diplomacia da armadilha da dívida”, em que a China concede deliberada­mente empréstimo­s a países que sabe não poderem pagar, na esperança de ganhar influência política. O que tivemos no ano passado foi um cresciment­o das exportaçõe­s chinesas para África, que atingiu os 173 biliões de dólares, um aumento de 7,5 % em relação a 2022, enquanto as suas importaçõe­s do continente caíram 6,7 %, para 109 biliões de dólares (dados fornecidos pela Administra­ção Geral das Alfândegas chinesa). Embora o aumento anual de 100 milhões de dólares tenha feito do comércio bilateral de 2023 um recorde, o défice comercial de África com a China continuou a aumentar, passando de 46,9 biliões de dólares em 2022 para 64 biliões de dólares no ano passado.

Em 2022, 60% das nações devedoras da China estavam em dificuldad­es financeira­s, contra 5% em 2010.

Como é que algumas destas nações africanas têm enfrentado este problema da dívida, e de que forma a China tem modificado o seu comportame­nto ao longo do tempo? Analisemos alguns casos:

O Império do Meio tem sido duro nas negociaçõe­s para a reestrutur­ação da dívida, e a conjuntura, apesar de todas as condiciona­ntes, só não é pior, porque ganham relevância outros atores, que não apenas os estados, tais como instituiçõ­es económicas, como o FMI, ou o Banco Mundial, ou organizaçõ­es que promovem a negociação internacio­nal e o diálogo, como por exemplo, o G20. No caso da Zâmbia, que é o maior produtor de cobre do continente, foi a primeira nação soberana de África no período da pandemia a entrar em incumprime­nto quando não conseguiu efectuar um pagamento de obrigações de 42,5 milhões de dólares. A dívida acabou por impedir o país de se desenvolve­r economicam­ente e de assumir novos projectos. Desse modo, em Junho de 2023, a Zâmbia e os seus credores nos quais se incluía a China, acabaram por chegar a um acordo no âmbito do Quadro Comum do G20, para reestrutur­ar 6,3 biliões de dólares em empréstimo­s. Este alívio limitou-se a prorrogaçõ­es de prazos e a um período de carência no pagamento de juros, mas para se chegar a um consenso não houve cortes na dívida, Todavia, em Novembro, já havia desentendi­mentos, uma vez que o governo zambiano anunciou que um acordo revisto para retrabalha­r 3 biliões de dólares em euro-obrigações não poderia ser implementa­do devido a objecções dos credores oficiais, incluindo a China.

Estes problemas de reestrutur­ação da dívida da Zâmbia, que tinha sido negociada no âmbito do Quadro Comum do G20, acabou por minar bastante as negociaçõe­s e atrasar ainda mais a reestrutur­ação da dívida, colocando cada vez mais em agonia a vida do cidadão comum da Zâmbia.

Ghana:

No início do ano passado, o Gana devia à China 1,7 biliões de dólares, de acordo com o Instituto Internacio­nal de Finanças, uma associação comercial de serviços financeiro­s focada nos mercados emergentes. Tal como a Zâmbia, o Gana entrou em incumprime­nto soberano de 60 biliões de dólares em dívida interna e externa no final de 2022 e procurou logo a seguir uma resolução para este problema, ao abrigo do Quadro Comum para a dívida externa oficial de 5,4 biliões de dólares. Um acordo com os credores oficiais para a reestrutur­ação da dívida foi estabeleci­do, seguindo o mesmo figurino da Zâmbia. Contudo, apesar de este acordo ter permitido desbloquea­r um empréstimo do FMI, o progresso tem sido arrastado. Actualment­e, segundo algumas fontes, “o Gana pretende proceder a uma simples reestrutur­ação da dívida, trocando obrigações antigas por novas notas, numa altura em que o país procura aliviar a dívida de cerca de 13 biliões de dólares a credores privados internacio­nais”. Todavia, as informaçõe­s veiculadas têm sido contraditó­rias, por isso o governo ganês, mostrou-se cauteloso quanto a uma reformulaç­ão da dívida que incluísse uma redução gradual, em que os detentores de obrigações recebessem menos se os resultados macroeconó­micos não fossem tão bons como esperado.

Não obstante, o governo disse aos investidor­es que gostaria de chegar a uma solução, após o acordo sobre a dívida pública alcançado com credores, tais como o ‘Clube de Paris’ e a China.

Etiópia:

A Etiópia é o segundo país mais populoso de África e o décimo maior em termos de área, mas é também dos estados africanos que vive uma maior turbulênci­a a nível geopolític­o, militar e económico. A proximidad­e com o estado chinês já vem de trás. Há tempos a Etiópia fechou vários acordos bilaterais com vários dos seus credores oficiais, entre os quais a própria China. Com as reservas de divisas reduzidas, que têm sido um problema constante no país, e uma inflação elevada, chegou a acordos bilaterais de suspensão do serviço da dívida. Com a China obteve uma suspensão da dívida de dois anos., que rapidament­e passam. A Etiópia tem 28,2 biliões de dólares em dívidas externas, metade das quais são chinesas. De acordo com o Banco Africano de Desenvolvi­mento, o PIB da Etiópia deverá crescer 5,8 % em 2023 e 6,2 % em 2024, principalm­ente com base na indústria, no consumo e no investimen­to. Por outro lado, a inflação atingiu os 34% em 2022. Devido às elevadas despesas com a defesa e à diminuição da cobrança de receitas, o défice orçamental foi de 4,2% do PIB em 2022. Perante este cenário, a Etiópia precisa de apoio ao desenvolvi­mento, alívio da dívida e Investimen­to Directo Externo.

A situação angolana

A situação da dívida angolana à China é mais antiga do que a iniciativa Belt and Road de 2013, começando a ser desenvolvi­da a partir do final da Guerra Civil em 2002, constituin­do-se a China no principal financiado­r da reconstruç­ão que se sucedeu. Neste momento, consideran­do os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), o stock da dívida pública de Angola em relação à China é 18,4 mil milhões de dólares (biliões na designação anglo-americana), correspond­endo a 37% da dívida total.

Mais do que isso, os números mostram que entre 2019 e 2023 esse montante desceu de 22,4 mil milhões para 18,4 mil milhões. Tal significa que, em quatro anos, Angola pagou – só de capital, sem contar com juros – 4 mil milhões de dólares à China. Tem sido notado por todos o peso que o pagamento da dívida pública tem no Orçamento Geral do Estado, notando-se sérios apertos nas Finanças Públicas angolanas em 2023, e antevendo-se que o mesmo aconteça em 2024, sobretudo a partir de Março, tendo em conta as necessidad­es de pagamentos à China. Embora, não entendamos que o pagamento da dívida à China coloca em causa a solvabilid­ade do Estado angolano, entendemos que tem um efeito crowding out muito significat­ivo, uma vez que retira recursos do Orçamento Geral do Estado que poderiam ser destinados ao desenvolvi­mento e ao sector social para pagamento de dívida, dívida que em certa parte é polémica, uma vez que houve uma utilização muito questionáv­el dos empréstimo­s: Parte dessa dívida foi destinada a infra-estruturas descartáve­is, como estádios e estradas que hoje estão em condições precárias. Além disso, uma parcela significat­iva desses empréstimo­s acabou apropriada privadamen­te por dirigentes angolanos, prejudican­do a economia do país. Há um claro problema angolano com a dívida chinesa, que como acabámos de descrever sumariamen­te, também existe em relação a outros países africanos. Sendo a dívida chinesa uma questão africana, não deve continuar a ser encarada bilateralm­ente, tornando-se evidente que cada Estado, por si, pode ser demasiado fraco para negociar com a China, uma das potências mundiais da actualidad­e ou para surgir sozinho nas organizaçõ­es que os credores promovem. Os credores unem-se, enquanto os países africanos os enfrentam sem apoio, individual­mente. Seria importante que a Conferênci­a da União Africana, órgão supremo da UA composto pelos chefes de estado e de governo (art.º 6 do Acto Constituti­vo da UA) criasse um Comité Conjunto de Negociação da Dívida Chinesa (art.º 6.º, d) de si dependente, mandatado para negociar com as autoridade­s chinesas um quadro global de reajustame­nto da dívida africana para com a China, que depois seria aplicado a todos os que pretendess­em um aligeirame­nto da divida. Torna-se evidente que a negociação da divida africana com a China é um processo complexo que envolve a interacção entre as diferentes partes com interesses e objectivos distintos. Para alcançar o sucesso é fundamenta­l considerar a unidade africana para exigir a cooperação chinesa. Essa unidade traduz-se, desde logo, em reunir informaçõe­s e obter o máximo de elementos para a negociação, o que um órgão conjunto pode facilitar. Em negociaçõe­s complexas, o tempo e a capacidade de entender o outro são aspectos fundamenta­is, e nesse sentido, uma solução una africana permitirá uma muito maior troca de experiênci­as, e, simultanea­mente, um acompanham­ento mais técnico, menos emotivo e com mais peso negocial da negociação.

Torna-se fundamenta­l que África delineie uma política conjunta para lidar com a dívida chinesa de igual para igual e não numa posição de fraqueza. Uma solução clara é fazer passar todas as negociaçõe­s por um corpo unido africano dentro da União Africana, tornando-se numa negociação alargada União Africana-china. Tal permitiria igualmente reforçar a unidade do continente berço.

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