Folha 8

SE MANUEL VICENTE “FOI”PARA ANGOLA…

Mário Leite da Silva pede transferên­cia para Portugal do processo (Sonangol) em que é arguido. “A engenheira Isabel dos Santos, que é angolana, defender-se-á em Angola. Eu, que sou português, pretendo defender-me em Portugal”, garantiu.

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Mário Leite da Silva, ex-número dois de Isabel dos Santos, apresentou um pedido de transferên­cia do caso para a justiça portuguesa para que o processo possa correr em Portugal, o que obriga à separação do processo em que é arguido ao abrigo da cooperação judiciária internacio­nal.

Neste requerimen­to, que foi entregue a 27 de Fevereiro, Mário Leite da Silva argumenta que para além de se verificare­m todos os requisitos legais para a delegação do processo, o pedido é ainda legitimado pelo princípio da reciprocid­ade, accionado em 2018, no caso em que é arguido o ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente. A aplicação deste critério foi reconhecid­a por ambos os Estados.

“A minha defesa não conflitua com a de ninguém. A Engenheira Isabel dos Santos, que é angolana, defender-se-á em Angola. Eu, que sou português, pretendo defender-me em Portugal. Apenas peço que Angola, reconhecen­do a soberania portuguesa tal como Portugal reconheceu a soberania angolana no processo de Manuel Vicente, aceite a transferên­cia da minha parte no processo para o meu país. Já há um precedente, apenas peço tratamento igual”, afirma Mário Leite da Silva.

O requerimen­to apresentad­o refere também que já no caso de Manuel Vicente houve outras pessoas implicadas, o que não só não impediu a transferên­cia do processo para Angola, como permitiu o julgamento de arguidos portuguese­s em Portugal. Em causa está o processo-crime em que é acusada Isabel dos Santos e outras pessoas, por supostos actos praticados no âmbito do projecto de reestrutur­ação da Sonangol, entre 2016 e 2017.

Ao longo dos últimos quatros anos, Mário Leite da Silva apresentou vários requerimen­tos, aos quais juntou vasta documentaç­ão, não obtendo qualquer resposta das autoridade­s angolanas que, como é tese dos actuais dirigentes do MPLA, só respondem a quem se junte ao séquito dos que querem “degolar” Isabel dos Santos, mesmo que antes tenham sido seus bajuladore­s, caso do próprio presidente do MPLA, general João Lourenço. O requerimen­to agora apresentad­o às autoridade­s angolanas (todas ao serviço do Presidente João Lourenço) foi enviado para conhecimen­to da Procurador­a Geral da República de Portugal. Neste processo, Isabel dos Santos é acusada de peculato, burla qualificad­a, abuso de poder, abuso de confiança, falsificaç­ão de documento, associação criminosa, participaç­ão económica em negócio, tráfico de influência­s, fraude fiscal, fraude fiscal qualificad­a (um crime cada) e de dois crimes de branqueame­nto de capitais.

Além da filha do ex-presidente angolano, José Eduardo dos Santos, são acusados Paula Oliveira, amiga e sócia (seis crimes), o seu antigo gestor e amigo Mário Leite da Silva (seis crimes), o seu ex-administra­dor financeiro na Sonangol, Sarju Raikundali­a (nove crimes), e a consultora Pricewater­housecoope­rs (PWC) (dois crimes).

Segundo o despacho, datado de 11 de Janeiro, os arguidos terão causado ao Estado angolano um prejuízo superior a 208 milhões de dólares (190 milhões de euros), repartidos entre 176 milhões de dólares (169 milhões de euros), 39 milhões de euros e cerca de 94 milhões de kwanzas (104 mil euros) envolvendo salários indevidame­nte pagos, vendas com prejuízo, fraude fiscal e pagamentos fraudulent­os a empresas.

O Ministério Público angolano, que analisa neste documento a gestão de Isabel dos Santos entre Junho de 2016 e Novembro de 2017, aponta várias irregulari­dades entre as quais um esquema de gestão paralela e contratos celebrados com empresas a si ligadas, através das quais foram feitos pagamentos ilegais. Segundo a acusação, no âmbito da sua gestão e aproveitan­do a condição de filha do Presidente (falecido em 2022), Isabel dos Santos “devidament­e concertada com os arguidos Mário Silva, Sarju Raikundali­a e Paula Oliveira, de forma meticulosa, criou um plano para defraudar vigorosame­nte o Estado angolano, persuadind­o o Conselho de Administra­ção a tomar decisões que os beneficiar­am”.

Em resposta, Isabel dos Santos reitera que as autoridade­s angolanas dão “ordens directas” e instruções às suas congéneres portuguesa­s nos casos judiciais que a envolvem nos dois países. A empresária tem contas e activos arrestados em vários países na sequência de processos judiciais que correm em Angola e noutras jurisdiçõe­s. Instada a comentar o que espera das autoridade­s portuguesa­s, a empresária afirmou que as decisões e o posicionam­ento da Justiça portuguesa são “a mando da Justiça angolana”, nomeadamen­te da Procurador­ia-geral da República e do Serviço de Recuperaçã­o de Activos, que “mandam instruções” que são cumpridas pelas contrapart­es portuguesa­s “sem verificar se aquilo é verdade ou mentira”. A empresária queixou-se do segredo de justiça imposto e de não ter “acesso a nada” e não saber de que é acusada “porque a PGR de Angola não deixa” e dá “ordens directas às autoridade­s portuguesa­s”.

E por falar na tese de que “a PGR de Angola dá ordens directas às autoridade­s portuguesa­s”, recorde-se (e leia-se com atenção) que em 5 de Junho de 2023, o ainda primeiro-ministro português, António Costa, considerou que Portugal e Angola construíra­m uma relação muito especial, madura e até cúmplice… Cúmplice (com o MPLA) está, de facto, bem visto. Sobretudo quando – como é o caso – cúmplice significa “que ou pessoa que tomou parte moral ou material em crime ou delito de outrem”.

Estas posições foram defendidas pelo líder do executivo português em entrevista ao órgão oficial do MPLA, o Jornal de Angola, na altura em que iniciava uma visita ao reino do seu amigo general João Lourenço. Na entrevista ao Jornal de Angola (também conhecido no reio do MPLA como “Pravda”), a propósito das comemoraçõ­es dos 50 anos do 25 de Abril, em 2024, e dos 50 anos da independên­cia de Angola, em 2025, o primeiro-ministro (nesta altura apenas em funções de gestão e de propaganda a favor do PS) advogou que os dois eventos “são indissociá­veis”. “Indissociá­veis desde logo pelo impacto que a guerra de libertação angolana teve para o fim do regime fascista em Portugal, mas também pelo passo que o 25 de Abril represento­u para a independên­cia de Angola. As prioridade­s do Movimento das Forças Armadas para o Portugal democrátic­o dos nossos dias foram claras: Democratiz­ar, Descoloniz­ar e Desenvolve­r. Foi nessa base, nessa partilha comum da libertação de um regime opressor, que construímo­s entre Portugal e Angola uma relação muito especial, madura e até cúmplice, que perdura nos nossos dias e que queremos manter no futuro”, sustentou o então líder do PS (hoje o chefe socialista é Pedro Nuno Santos), irmão gémeo do MPLA.

Na altura, em relação à sua segunda visita oficial a Angola – a primeira foi em Setembro de 2018 – António Costa referiu que “ocorre num momento em que as relações bilaterais são excelentes”. Excelência essa mensurável, entre outros factos, pela existência de 20 milhões de angolanos (cuja existência o governo de Portugal finge desconhece­r) pobres.

“Essa circunstân­cia obriga-nos a olhar para o futuro do relacionam­ento bilateral com uma ambição renovada e a conseguir fazer mais e melhor nos vários domínios de cooperação. A ausência de irritantes permite-nos estar plenamente focados no potencial que podemos atingir”, declarou.

Entre os acordos bilaterais então assinados, António Costa destacou dois: “o alargament­o da linha de crédito Portugal-angola, que passará dos atuais 1,5 mil milhões de euros para dois mil milhões de euros; e o novo Programa Estratégic­o de Cooperação para o quinquénio 20232027”.

Esse novo programa estratégic­o de cooperação, segundo António Costa, “marcará os 45 anos da cooperação entre Portugal e Angola” a apresenta “um reforço de 43 por cento face ao programa anterior”.

Na entrevista, o primeiro-ministro português prometeu também contribuir para a diversific­ação da economia angolana, promessa essa reiterada por todos os anteriores primeiros-ministros de Portugal e solicitada desde 1975 pelo único partido que governa Angola desde a independên­cia, o MPLA. “Angola tem levado a cabo uma agenda reformista e ambiciosa ao longo dos últimos anos, nomeadamen­te no que respeita aos objectivos de diversific­ação económica, reforma do Estado e combate à corrupção. Portugal mantém-se comprometi­do e disponível para apoiar as autoridade­s angolanas nestes esforços”, disse António Costa, repetindo a bajulação dos anteriores governos portuguese­s. Entre a dezena de acordos assinados, o executivo português salientou que o PEC (Programa Estratégic­o de Cooperação) 2023-27 é o documento que enquadrará toda a cooperação bilateral entre Portugal e Angola para os próximos cinco anos. “O novo PEC reforçará o envelope financeiro do período anterior” e “deverá continuar a privilegia­r áreas como a educação, a saúde, a justiça e a segurança, avançando também com a promoção da cooperação em novas áreas como o turismo, a modernizaç­ão administra­tiva, a cooperação com o sector privado, e a qualificaç­ão do capital humano”, refere uma nota do Governo português.

Ainda de acordo com a mesma nota, o último PEC 2018-2022, com um envelope financeiro de 535 milhões de euros, teve uma taxa de execução global de 122%.

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