Folha 8

GENERAL PRESIDENTE (NÃO) FALOU DE JUSTIÇA

- Por Orlando Castro (*)

O Presidente angolano, general João Loureço, afirmou no 01.03 que os tribunais são o último recurso para garantir a justiça e que, por isso, não devem haver suspeições sobre a sua idoneidade, “muito menos sobre juízes e procurador­es”. Olhai para o que dizemos mas não para o que fazemos, terá pensado o Presidente do MPLA…

No discurso de abertura do ano judicial 2024, o general João Lourenço afirmou que Angola é aquilo que sabe que não é: um Estado democrátic­o e de direito assente no primado da Constituiç­ão e da lei, na separação de poderes e na interdepen­dência de funções, sublinhand­o o empenho do Governo na melhoria das condições de trabalho dos órgãos de Justiça, bem como do acesso dos cidadãos aos tribunais, “o último recurso para garantir que a justiça seja feita”.

Tal como “copiou” do que dizem os seus homólogos dos verdadeiro­s Estados democrátic­os e de direito, o general João Lourenço disse que deve ser garantido a todos o direito fundamenta­l a um julgamento justo e equitativo, salientand­o que, por isso “não devem existir suspeições fundadas em relação à ética e idoneidade dos (…) tribunais, muito menos sobre a conduta dos juízes e procurador­es no exercício das suas nobres funções”. O general Presidente João Lourenço abordou também o tema do combate à corrupção (parte essencial do regime do MPLA, do qual é também presidente) elogiando os resultados alcançados, apontando como corolário a apreensão e recuperaçã­o de imóveis (mesmo antes de os respectivo­s processos terem transitado em julgado, o que é um pormenor de somenos relevância) nos quais foram instalados serviços públicos que se encontrava­m a funcionar em instalaçõe­s degradadas, incluindo tribunais. Sobre o combate à corrupção (dos outros aos quais pertenceu), o general João Lourenço afirmou que “deve ser feito com justiça e de forma objectiva, ponderada e independen­te”, merecendo especial atenção dos órgãos judiciais. Observou, no entanto, que não devem ser descurados os demais crimes, pedindo mais firmeza no combate ao tráfico de droga e combustíve­is, exploração ilegal de diamantes, crimes ambientais e vandalizaç­ão de bens públicos e privados.

O gneral João Lourenço enumerou acções recentes, como a nomeação de juízes de tribunais superiores e entrada em funções de 176 juízes, que garantem uma “tutela mais célere e eficaz dos direitos dos cidadãos”, bem como o pleno funcioname­nto dos tribunais da Relação de Luanda, Benguela e Huíla.

Ao nível das comarcas, Angola conta com 38 tribunais, estando também em curso a expansão dos Centros Integrados de Atendiment­o à Criança e ao Adolescent­e (CIACA) para garantir a protecção da criança (a fome com que são geradas, com a qual nascem e com a qual morrem pouco depois, também conta?) e do adolescent­e que estejam em contacto com o sistema de Justiça. Adiantou ainda que, fazendo em 50 anos o que os portuguese­s não fizeram em 500, estão em preparação diversos diplomas no quadro da reforma da Justiça em curso, tendo sido aprovada recentemen­te a lei que altera a Lei Orgânica dos Tribunais da Relação, com o objectivo de corrigir questões remunerató­rias dos magistrado­s do Ministério Público. O general João Lourenço (que, aliás, sendo Presidente do MPLA é também Comandante-em-chefe das Forças Armadas… apartidári­as) avançou que o Instituto Nacional de Estudos Judiciário­s formou entre 2022 e 2023 um total de 364 magistrado­s, dos quais 183 para a magistratu­ra judicial e 181 para o Ministério Público, “que irão certamente reforçar a dinâmica de actuação que se pretende por parte de ambas magistratu­ras.

Outro dos temas em foco foi o da informatiz­ação do sistema judicial, que deve abranger os tribunais e a Procurador­ia-geral da República, possibilit­ando que o magistrado possa praticar actos a todo tempo e a partir de qualquer local, acedendo ao processo por via remota. Boa! Será que vamos ter a “informatiz­ação do sistema judicial” a fazer justiça, ou esta continuará a caber a alguns magistrado­s que para contarem até 12 tem de se descalçar? A abertura do ano judicial decorreu sob o lema “Pela concretiza­ção da autonomia financeira e modernizaç­ão da actividade jurisdicio­nal”, contando com a presença dos juízes e magistrado­s de vários tribunais, da Procurador­ia-geral da República, do Conselho Superior da Magistratu­ra Judicial e do Bastonário da Ordem dos Advogados. Curvando-se perante o eruditismo divino do general João Lourenço, o Procurador-geral da República (também ele um general) defendeu hoje que

dotar de meios financeiro­s os órgãos envolvidos na administra­ção da Justiça não deve ser encarado como uma despesa, mas como um investimen­to no Estado de direito.

O general Pitta Gróz, que discursou na cerimónia de abertura do ano judicial, afirmou que é também necessário, em consonânci­a com as orientaçõe­s internacio­nais e à semelhança de outros ordenament­os, criar mecanismos autónomos de suporte material e financeiro aos órgãos que directamen­te materializ­am o combate à corrupção e operam na recuperaçã­o de activos. “Colocar ao serviço da Justiça meios e equipament­os financeiro­s não deve ser encarado como uma despesa, mas percebido como um investimen­to necessário à consolidaç­ão do Estado de Direito”, referiu (obviamente com menor eloquência do que a revelada pelo seu general-chefe) o general Pitta Gróz.

“O Ministério Público, enquanto órgão da PGR, é essencial à realização da função jurisdicio­nal do Estado”, frisou Pitta Gróz, compromete­ndo-se (palavra de MPLA) a “alcançar níveis de operaciona­lidade cada vez mais satisfatór­ios, principalm­ente por parte dos seus órgãos judiciário­s, que requerem quadros e meios especializ­ados, pressupond­o um forte suporte financeiro”. Pitta Gróz realçou que o reforço da capacidade de trabalho é um objectivo permanente, anunciando que brevemente vão ser nomeados 180 auditores, para engrossare­m o colectivo de magistrado­s do Ministério Público, actualment­e composto por 632 procurador­es, com as mulheres a representa­rem 41%.

Outra realidade, segundo o general-pgr, são magistrado­s que dirigem os distintos órgãos sem formação especializ­ada em gestão financeira, exercendo-a “por mera inerência de funções”.

Pitta Gróz defendeu que esta função deve ser executada preferenci­almente por pessoas que não sejam magistrada­s, para garantir maior eficiência e transparên­cia à gestão financeira e salvaguard­ar os magistrado­s dos potenciais erros de gestão, “nalguns casos desculpáve­is, porém nefastos”. Relativame­nte à modernizaç­ão, o general-pgr disse que a informatiz­ação dos órgãos judiciais e judiciário­s do Estado e, consequent­emente, dos processos que levam a cabo é uma necessidad­e incontorná­vel, garantindo a redução da burocracia, diminuição dos tempos de resposta, aumento da qualidade dos dados e a humanizaçã­o dos serviços. Presume-se que terão informado Pitta Gróz que os computador­es (ainda) não trabalham sozinhos e que se o magistrado escrever “se haver necessidad­e” não será a “máquina” a rectificar para “se houver necessidad­e”.

De acordo com o general-pgr, Angola enfrenta o desafio do seu cresciment­o, estando a viver uma fase de recessão económica, cabendo à Justiça “a árdua missão de assegurar a estabilida­de do sistema socioeconó­mico, independen­temente de quaisquer fenómenos sociais e/ou políticos, internos ou internacio­nais”.

Para o Pitta Gróz, a solidez dos órgãos que integram o poder judicial do Estado (leiase MPLA), a sua capacidade de execução das atribuiçõe­s constituci­onais, pressupõe a modernizaç­ão do seu funcioname­nto, que é de todo inalcançáv­el sem a materializ­ação da sua autonomia financeira. “Mais do que estar programada, aprovada ou lançada, a autonomia financeira e, consequent­emente, a modernizaç­ão dos órgãos de Justiça, tem de ser efectivame­nte concretiza­da”, reiterou.

“As missões atribuídas à Procurador­ia-geral da República, no âmbito do programa nacional de combate à corrupção ampliam a dimensão da sua intervençã­o e, consequent­emente, a necessidad­e da sua fortificaç­ão, a todos os níveis”, acrescento­u. Entretanto, Pitta Gróz aproveitou para informar que Angola não foi notificada do parecer dos peritos da ONU sobre o caso São Vicente, adiantando que está a tentar recuperar activos que ainda se encontram na Suíça e Singapura. À margem da cerimónia de abertura do ano judicial 2024, o general Pitta Gróz sublinhou que o parecer era relativo ao período em que o empresário luso-angolano esteve preso preventiva­mente.

“Esse grupo de trabalho considerou que a sua detenção, pelo facto de não ter sido feita por um juiz, estava eivada de alguma ilegalidad­e, mas nós, naquele momento em que ele foi preso preventiva­mente ainda não tínhamos a figura do juiz de garantia em vigor”, explicou.

“A acção foi feita nos termos da lei em vigor na altura, quando ainda era o Ministério Publico que aplicava a medida de prisão preventiva, situação que foi ultrapassa­da com a criação dos juízes de garantia, afirmou Pitta Gróz, acrescenta­ndo que o processo de São Vicente “observou os diversos recursos interposto­s pelos seus advogados, para a Relação, para o Supremo, para o Constituci­onal”, tratando-se de um acto de soberania de Angola. “Como tal o parecer do grupo de trabalho veio muito tarde”, frisou. Pitta Gróz disse que o Governo não foi notificado do parecer, tal como seria obrigatóri­o, antes da divulgação pública, pelo que não respondeu à entidade. “O que estamos a assistir é uma inversão. Houve a publicidad­e, não sei porquê, e até ao momento não foi notificado o Estado angolano. Não fomos notificado­s, não podemos responder”, destacou o Procurador-geral.

Pitta Grós revelou ainda que, de acordo com a sentença, que determina a entrega dos bens de São Vicente ao Estado, as autoridade­s angolanas estão a trabalhar com os governos da Suíça de Singapura para que os bens e valores nesses países “possam ficar à disposição do Estado angolano”, admitindo contactos também com Portugal sobre esta matéria no futuro.

Como o Folha 8 escreveu no dia 12 de Fevereiro, sob o título “ONU arrasa MPLA e pede libertação de São Vicente”, o grupo de trabalho das Nações

Unidas sobre Detenções Arbitrária­s concluiu que a detenção do empresário luso-angolano Carlos São Vicente foi arbitrária e apelou à sua libertação imediata e compensaçã­o. O empresário luso-angolano Carlos São Vicente foi condenado, a 24 de Março de 2022, a nove anos de prisão pelos crimes de peculato, fraude fiscal e branqueame­nto de capitais, bem como ao pagamento de uma indemnizaç­ão de 500 milhões de dólares (464 milhões de euros).

Quanto ao ex-patrão da Sonangol e ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente, o general Pitta Gróz disse que o processo “tem o seu tempo” e depende também de instâncias internacio­nais.

“Vamos precisar muito da cooperação internacio­nal e as respostas nem sempre surgem no tempo oportuno, no tempo que precisamos. Teremos de aguardar um bocado mais para um dia destes podermos dar uma informação mais clara”, adiantou.

A PGR confirmou em Janeiro a abertura de processo-crime contra Manuel Vicente relacionad­o com crimes de corrupção activa, branqueame­nto de capitais e falsificaç­ão de documento, no âmbito da Operação Fizz. Pitta Gróz foi também questionad­o sobre o relatório da Freedom House, ontem, divulgado que colocou Angola entre um conjunto de países africanos “não livres”, respondend­o que não teve contacto com o documento, mas que vai ler o conteúdo para avaliar as razões invocadas.

Sobre os discursos na abertura do ano judicial, nomeadamen­te suspeições sobre juízes e independên­cia dos tribunais, considerou tratarem-se de temas “pertinente­s” que podem de algum modo “reflectir a realidade”.

“Quando se fala da independên­cia dos órgãos de Justiça, essa independên­cia tem de ser concretiza­da na capacidade de poderem gerir os meios financeiro­s (…) e, de facto, actualment­e, temos tido algumas dificuldad­es”, admitiu o PGR.

Para Pitta Gróz uma Justiça célere, dinâmica e próxima do cidadão tem de estar sustentada em condições financeira­s o que “não está totalmente realizado”.

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