LANGIDILA: DA POLÍTICA À ESCRITA INTIMISTA
Langidila, nome de guerra de Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida, foi das guerrilheiras com maior representatividade na luta pela libertação de Angola e no seio no MPLA. A única mulher com assento no Comité Director do partido, na década de sessenta. Além do seu legado de empenhado activismo político, a guerrilheira deixa uma obra composta por poemas, correspondências e um diário que reúne cerca de onze anos da sua vivência: “Diário de um exílio sem regresso”, o livro sobre o qual nos iremos debruçar.
Enquanto folheava o diário de Deolinda Rodrigues percebi que, cada página era a porta de entrada para um túnel, do qual seria difícil sair. Deolinda revela- se uma mulher extremamente coerente nas suas inúmeras preocupações, nos seus princípios, no seu pioneirismo e nas suas conquistas. Ela é uma personagem que precisa ser constantemente revisitada e compreendida. “Diário de um exílio sem regresso” vai de 1956 a 1967. Os relatos começam com a entrada de Deolinda para o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), conta as suas proezas enquanto esteve no exílio e a sua captura pela
UPA, então organização política adversária do MPLA. Podemos afirmar que, em Deolinda Rodrigues, a escrita diarística surge da necessidade de partilhar com o mundo suas emoções mais íntimas, já que, devido ao secretismo que se exigia, na época, a fala poderia constituir um perigo. “Mamã, mamã inspira-me, ajuda-me a não falar demais. / É que, num ambiente destes, a gente não pode desabafar com ninguém para evitar milonga”. Nesse sentido, o diário era o seu lugar de reflexão, desabafo, registo e análise do que acontecia à sua volta. Pois, a memória tem caminhos tortuosos, muitas vezes nos prega partidas e nos esquecemos do que gostaríamos de recordar. Langidila compreendia a intemporalidade da escrita e registava tudo o que lhe importasse, desde datas, nomes, lugares, chegadas e partidas, situação da guerrilha e o clima dentro do partido da forma mais detalhada possível, para não perder nada. A guerrilheira organizava o caos da vida quotidiana através da escrita. Consignava seus dias para acompanhar e compreender o mundo à sua volta. Esse diário pode ser considerado como um elo entre Deolinda e o mundo. Embora traga laivos de um verniz lírico, a guerrilheira não tinha a escrita como uma vocação literária, a escrita não era o centro de sua existência, mas deixar de escrever não era uma opção. Pois, significaria anular a possibilidade de repensar os seus mais profundos questionamentos. O foco da escrita de Deolinda Rodrigues é a própria escrita, uma escrita que existe sem a necessidade de um interlocutor, ela não é pensada como uma forma de comunicação, uma vez que não há leitor, apenas a própria Langidila. É um tipo de texto que não é planeado, ele é escrito de forma espontânea, sem regras, de acordo com o espírito de quem o escreve. O diário íntimo faz parte do género autobiográfico, porque se centra no eu para narrar factos vitais. Como sabemos, esses dois escritos diferem no facto de que a autobiografia é escrita como um acto comunicativo do autor para o leitor. Os diários são um tipo diferente de escrita, uma vez que não são pensados como textos comunicativos, como já vimos, são considerados textos nos quais o remetente é o mesmo receptor. O diário de Deolinda é marcado pela sua busca existencialista e postura crítica em relação ao poder colonial. O “Diário de um exílio sem regresso” é um lugar de gestação e amadurecimento das perspectivas da autora sobre Angola, a luta pela libertação, a situação da mulher e a política. A escrita de Langidila vem reafirmar o seu lugar e participação na história do nosso país. A imagem da mulher que lutava diariamente contra as barbaridades do colono era substituída por uma mulher vulnerável e dócil Langidila tornou-se num
mito que todos tentam explicar a qualquer custo, esquecendo-se, na maioria das vezes, da sua própria vivência, seus anseios e medos.
À medida que crescia a hostilidade do colonizador e a luta tornava-se cada vez mais incerta, nascia a dúvida, o medo de falhar e a dor de ver o próximo sofrer. Esse veneno perigoso e mortal deixava o coração de Deolinda doente e a mente conturbada. A guerrilheira chegou a pensar no suicídio saída. Ela carregava no seu íntimo a ideia de lutar ou morrer ao pé da letra. A respeito de seus componentes, o diário de Deolinda Rodrigues desvela o interior de uma sujeita traumatizada. Quando se sentisse inibida ou quando a solidão e a saudade apertassem demais, pensava na morte como uma de suas saídas. A imagem da mulher que lutava diariamente contra as barbaridades do colono era substituída por uma mulher vulnerável e dócil. Esses locais transformadores se configuram como espaços que propiciam uma maneira possível de viver, e funcionam como locais de auto-legitimação. O que torna essa escrita não apenas um campo de batalha dos eus, mas também, e principalmente, um lugar de transformação do discurso e da construção de si. “Estou com vontade de desaparecer para sempre! A música tem-me distraído muito e como amanhã retomo as lições e a ginástica, espero ultrapassar esta solidão”.
“Até nas reuniões de oração, os nossos olhos falam política, mas D. Doroteia pensa que estamos a meditar na palavra do Senhor”. Essa pequena passagem sintetiza uma das principais questões que permeiam os escritos da autora, Deolinda tinha uma espécie de obsessão pela mudança de paradigma, essa mulher respirava política. A guerrilheira deixou o seu berço, o conforto do colo familiar e cedo partiu para ir em busca do sonho de ver os seus irmãos livres e juntar-se aos angolanos no exterior, que dominavam as acções clandestinas para consolidação de um movimento que fizesse frente as atrocidades do governo da época e a massificação das ideias independentistas. Com uma Angola dominada pelo colono português, e a rivalidade com a UPA no pico, ela lutou contra todas as restrições e violências da época e deixou os seus ideais bem carimbados nos anais da nossa história. Embora tivesse uma educação religiosa, através da Igreja Metodista, depois do arranque da guerra, Langidila distanciou-se das práticas protestantes, pois, via nelas a perpetuação das práticas coloniais que combatia. Como podemos ver nos seus apontamentos de 28 de Maio de 1960: “A Dona Dina disseme pra não fazer política (não sei como ela desconfiou ou descobriu as reuniões passadas) pra não arranjar encrenca aos missionários, à igreja e ao instituto. Nem lhe respondi. Onde for, vou sempre falar das condições na terra. Lixem-se lá as missões e o resto. A minha família, o meu Povo vale mais do que todo o resto” Embora a jovem política tenha alcançado uma posição de destaque dentro do MPLA, emerge, no texto, a questão da opressão de género que estava profundamente entranhada nas práticas do “homem novo”, que, na verdade é um herdeiro das práticas coloniais que renegava, e ao mesmo tempo manifestava em práticas comuns e consolidadas na sociedade angolana pelos próprios movimentos de libertação. Deolinda aborda sobre as questões de género, com temas como o casamento, trabalho doméstico, a alfabetização, a prostituição e a sexualização da mulher, mas também sobre a necessidade de uma solidariedade feminina que lograsse ir para além das divisões geradas pela sociedade colonial e patriarcal. A guerrilheira tinha uma forte consciência de como os corpos negros eram objectifiados.
“A fome, a insegurança e a situação em geral fazem descarrilar os nossos guerrilheiros cada vez mais reclamantes e exigentes. Coitados! O que me desgosta e revolta é a atitude deles, sexual demais para com as mocinhas do povo: começam logo a apalpá-las. Parece que assim estão a mobilizar o povo ao contrário” Deolinda Rodrigues está longe de ser uma figura de consenso, embora sua vida tenha terminado abruptamente, seu trabalho, activismo e força são irrefutáveis. Um trabalho que hoje, tem um fraco reconhecimento, mas que a colocou muito à frente do seu tempo, de tal maneira que influencia as mulheres das novas gerações. Esse diário encaixa-se perfeitamente naqueles que são considerados livros arrasadores é o tipo de livro que inspira uma energia viva em palavras. Além do mais, os escritos de Langidila se retroalimentam, escrevem-se uns nos outros de tal modo que o poder expresso em um texto se reinventa nos demais. Esse diário é uma maneira de se conhecer e de se fazer conhecer.