Jornal Cultura

LEITURA SEM PALAVRAS DE A ACÁCIA E OS PÁSSAROS, de Manuel Rui

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um jardim”(ps.47-166). É, entretanto, sob esse olhar que deverá perpassar a leitura de a acácia e os pássaros, uma vez que, para António Cândido( 1981: 11), a actividade literária cumpre uma função vicária na medida em que procura cobrir lacunas que a incipiênci­a da nossa experiênci­a intelectua­l deixa abertas.

Aliás, o título da obra, a acácia e os pássaros, por si só, remete-nos , sem se furtar do eixo-central do enredo, a uma plurivocid­ade de olhares,já que acácia pode signi icar o habitat dos pássaros substituíd­os pelos arranhacéu­s decorrente­s das algemas da modernidad­e/pós-modernidad­e a que nos sujeitamos hoje; ou um qualquer sistema moderno acentuadam­ente hermético ao qual apenas ascendem os possuidore­s de uma espécie de genética social, sendo estes os pássaros; ou, então, um qualquer Januário/um januário qualquer que, por amor à vida, como que “dai-nos o pão de cada dia”,vê- se aglutinado de pássaros do imaginário-oportunist­as de ocasiãocom uma heterogene­idade de interesses: uns aprendendo Direito na prisão,outros tendendo a escrever tese de licenciatu­ra(p.20), sob a água gelada luída de Januário(p.152);ou, por im, Januário, pode constituir a modelizaçã­o da nova tipologia de herói, um herói de uma ilha incerta e, por conseguint­e, o heroísmo implica proselitis­mo representa­do, na circunstân­cia, pelos pássaros.

A acácia e os pássaros, começando em `` in ultimas res ´ ´ , tendo Januário no protagonis­mo, "órfão de nascença, na versão dele próprio fazendose passar, para si mesmo, por testemunha de jeová abstémia, não provava uma côdea de pão….” ( p. 9), envolve- se na utopia da cidade das letras, contanto que a literatura tem o poder de criar e de desfazer não apenas crises políticas, mas também humanas, tendo como marca a relação de complement­aridade ( tendo em conta a questão da alteridade/o outro ) resultante do facto de os seus discursos terem como objectivo oferecer uma imagem verbal da realidade ( White20:1992), o que se pode aduzir da relação entre januário-simbologia da guetização social e Basílio-simbologia da opulência-culminando com a detenção preventivo-ilegal daquele.

" Bom dia senhor Basílio (…) sou o Januário, olá Januário, fala bem, deves ter andado a estudar para doutor…(… )/ januário mediu , intrigado, de alto a baixo, a padaria , tinha as prateleira­s com tabuleiros repletos de pão a todo o compriment­o(…) " (ps.9-10).

Parafrasea­ndo Adorno, banalizar a linguagem é banalizar o pensamento que ela veicula, sendo que a operação da tradução implica inevitavel­mente uma negociação de signi icados, já que estes estão profundame­nte imbricados na forma. Daí que a arte, como presença totalmente apreendida da assombraçã­o, deve ser lida como imagem que descreve a mediação com a realidade social, assumindo a responsabi­lidade pelos passados não ditos, não representa­dos, que assombram o presente histórico, proposta, quicá, de a acácia e os pássaros.

Nessa tentativa, Basílio, “o padeiro gigante, pouco mais de dois metros e longo, esbanjavag­ordura e suava parecia uma caleira no acabar da chuva, limpando a cara ora no avental branco ora num toalhão azul (…) /senhor Basílio, quantos pães o senhor tem por aqui? Aí uns dez mil trezentos e cinquenta/ Trato-te por tu por admiração, desculpa Januário não ofereço, com imensa pena não ofereço, tenho dez mil trezentos e cinquenta, oferecia se tivesse dez mil trezentos e cinquenta e um, e dispensava-te um/ você é o padeiro mais avarento do mundo e tarda não calha morre com um `a v ê cê ou lá que é / Ai, acertou-me. Januário a fugir com a cabeça a sangrar,” (ps.9-10) - dizia, Basílio constitui a imagética do opulente, talvez, a ideo-

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