Dança contemporânea “CECI N’EST PAS UNE PORTE” O QUE É O HOMEM E PARA QUE SERVE?
O que podem evocar aqueles cubículos rectangulares sobre o palco onde os seis jovens (André Baptista, António Sande, Armando Mavo, Benjamim Curti, Daniel Curti e Samuel Curti) esbeltos e maciços na sua espessura carnal se desconstroem da sua cidadania, apertados entre quatro paredes de uma divindade terrena que os distorce, retorce, contorce e os tosse para a mesma questão de séculos: o que é o homem e para que serve? De que porta se está a falar, quando se diz que isto (ceci) não é uma porta
(n’est pas une porte)? Não é isto (a dança) a porta que não é uma porta? E a vida não é ela uma dança de portas abertas e de portas fechadas? Por exemplo, Angola, não é uma porta que se pode abrir para a angolanidade? Se este país (Angola) não é uma porta, como entrar na cidadania? E que porta pode o autor destas linhas abrir para entrar no enigma que a Companhia de Dança Contemporânea (CDC Angola) ergue no coração deste deserto humano em que nos esquecemos de ser portas para os outros nos entrarem e sermos jango sem portas, de se conversar, de se dançar?
Foram estas as reflexões que nos abriram a porta do coração depois de assistirmos no passado dia 22, no auditório Pepetela ( Camões/ Centro Cultural Português) à peça “Ceci n’est
pas une porte”, com cenografia de Ana Clara Guerra Marques e Nuno Guimarães. Não foi esta a pretensão expres- sa por Nuno Guimarães, quando diz, na sua nota a propósito de “Ceci n’est
pas une Porte”, tratar- se de “um convite claro à reflexão”?
A peça de dança contemporânea condensa nas nossas mentes o drama da Humanidade perante milénios de indiferença cósmica, no discurso estético dos bailarinos de traje mínimo branco sobre os corpos de ébano orbitando dentro e sobre os rectângulos abertos com música do Mundo e da tradição angolana a conferir à estrutura móvel e respirante um cenário ílmico de estórias contadas à lor da pele.
O que sai das caixas é sal luminoso de relógios musicais a escorrer da pele dos bailarinos. Estátuas ensanguentadas de ritmo e piano. Ana Clara e Nuno Guimarães pretendem recriar o génesis e o início do homem (um outro homem). No segundo andar passam nuvens vermelhas, o mesmo tom que texturiza o vídeo do lado direito. Ceci n’est pas une porte re-elabora em palco a teoria da (in)solidão, o umbigo de Deus parindo uma pátria. Retira-se dali um croquis da infância (o que é a dança senão um retorno à infância?).
Cada caixa abre-nos um micro ilme, a musculatura da saliva do tempo beijada por um sol rectangular, o diálogo com o público a sair do limbo, deste nosso tempo emerge o desfasamento: a nossa sociedade ainda não produziu artefactos da alma para investirmos na Arte incorpórea da Dança. Ceci n’est pas une porte questiona a noção humana de eternidade. Deus é imaterialmente mulher com corpo de homem negro: o homem omisso do tempo.