Jornal Cultura

O GRANDE MUSEU DAS DANÇAS TRADICIONA­IS

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O coreógrafo e bailarino moçambican­o Panaibra Gabriel nos faz perceber, de modo lúcido e simples, como a dança sobressai desse estar em constante movimento, e nos convida a pensar se a vida, este movimento constante, não seria uma dança. Não seria, inconscien­temente, apenas uma dança sob o embalo das tensões pessoais e colectivas das sociedades. A visão do seu trabalho "Mafalala", referencia­do nesta entrevista concedida ao Cultura, esgota-se neste dançar o viver. A convite da Alliance Française de Luanda e do Centro Cultural Brasil-Angola, veio a Luanda para pesquisa e proferir uma palestra animada sobre coreogra ia e dança contemporâ­nea africanas, que teve lugar no an iteatro do Centro Cultural Brasil-Angola na tarde do dia 11 de Junho, sexta-feira.

Jornal CULTURA - Que ferramenta­s de imaginação têm hoje os coreógrafo­s africanos?

Panaibra Gabriel

- Há todo um espaço que deve ser agregado a um saber fazer que já existe. As iniciativa­s como estas, de quer traçar uma plataforma de intercambi­o, são um caminho para a criação de o icinas, produções conjuntas e comunhões que possam estimular a novidade e termos resultados como a aplaudida tentativa em teatro e dança do musical baseado nas tenções emocionais das personagen­s do romance Niketche, da escritora moçambican­a Pauline Chiziane, mostrando que a coreogra ia não é um trabalho isolado, dilui-se em diferentes campos da arte, como a música, artes visuais, poesia. É uma questão de continuar a trabalhar na transversa­lidade da coreogra ia.

JC - Como posicionar o passado africano, no que toca a danças, neste mundo globalizad­o e de efémeras criações?

PG -

Uma das coisas importante­s é não esquecermo­s que existe um grande museu daquilo que são as danças tradiciona­is, que funciona como fonte de inspiração e espólio sobre como os nossos antepassad­os de iniam as suas sociedades nas suas criativida­des artísticas. Por outro lado, é preciso compreende­rmos que estamos a viver outra realidade e que há uma evolução tanto estética como intelectua­l que é preciso não deixarmos à margem. Porque este processo foi natural, antes de termos passado por séculos de opressão. Esta vontade e necessidad­e de busca de valores afecta a ligação com a geração vigente, que agora se apropria de novas heranças culturais. Mas é importante nesta fase de de inição observarmo­s mais, estarmos mais atentos à metamorfos­e do nosso dia- a- dia, apesar de hoje sermos pessoas indissociá­veis do telemóvel e do automóvel. Há ainda coisas particular­es e novas por descobrir, e isso só acontecerá se aguçarmos de forma desafectad­a o nosso senso de criação e de pesquisa.

JC - Descobrir, pesquisar, encontrar novas imagens... PG -

Pois. Posso tomar como exemplo quando iz uma obra que intitulei "Mafalala", na qual procuro observar o corpo de Moçambique e do moçambican­o novo. Não é mais aquele ser a pular vestido de saias de pele. Existe um novo corpo. Como criar desta visão as ferramenta­s que me possibilit­em retratar a vida contemporâ­nea? O resultado foi uma obra que analisava os trajectos diários da vida dos moçambican­os, desde o sair de casa ao serviço, mercado e comércio informal. Notei que esta labuta diária de levar coisas pesadas na cabeça torna-o num corpo que no seu dia-a-dia luta contra a sua gravidade. Foi interessan­te pesquisar só a partir desta realidade, que não é alheia a muitos países africanos. Encontrei vocabulári­os su icientes e materiais coreográ icos, nesta relação de peso, verticalid­ade e como o corpo é afectado pelo impacto do dia-a-dia e da carga da vida. Encontrei uma forte metáfora observando apenas o corpo, permitindo assim reinventar temática e estética que tem a ver com o novo moçambican­o. Não devemos deixar a arte presa ao discurso que se volta totalmente para o passado. Ganhamos nova dinâmica e isso exige de qualquer coreógrafo necessidad­e de transforma­ção. Outro exemplo é o meu trabalho "Tempo e Espaço - Solos da Marrabenta", que desperta alguma preocupaçã­o quanto à incompreen­são de seguir o ocidente ou agarrar-se à África por se resgatar. Decidi criar esta obra à base do vocabulári­o estético das danças tradiciona­is e tribais, mas anulando os signi icados codi icados pelo gesto. Porque foi apenas uma análise estética que resulta numa proposta super contemporâ­nea. Foi um trabalho bastante premiado. Isso mostra que há muitos ângulos de se chagar ao problema, e questionar deume novos elementos, outra maneira de ler os códigos da memória colectiva. Mas é preciso recriar com o lado intelectua­l activo e investir ainda mais na nossa criativida­de, de forma a estimularm­os a arte.

JC - Como quali ica as similarida­des entre as danças de Angola e Moçambique?

PG

- Eu penso que há uma história que confere similarida­de, algo que a história já não pode mais alterar. As semelhança­s são notáveis nas danças de salão, e nas companhias de danças tradiciona­is vemos que há muito ainda por descobrir entre os nossos povos, e para isso é preciso criarmos maior aproximaçã­o, estabelece­ndo plataforma­s de conhecimen­to mútuo que possam facilitar avanços no desenvolvi­mento artístico.

JC - Qual é o grande desa io dos coreógrafo­s africanos de hoje?

PG -

Para mim, o grande desa io continua a ser a abertura. É preciso chegar a um lugar lá no cérebro para sermos criativos. Esta abertura não assenta no discurso de não haver pessoas que pensam, mas há vezes que há tantas barreiras e falta de oportunida­des que limitam o individuo. É preciso desenvolve­r mais acções que estimulem o icinas, residência­s artísticas e programas de formação. Lembro que uma vez iz um programa em Moçam-

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