Jornal Cultura

FUTUROS DESENGRAXA­DOS

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Sentado numa esquina, na sombra, ao sol, por baixo de uma árvore, não importa qual, preferivel­mente no centro da cidade, nas zonas mais movimentad­as, bem cedo, cum- prindo rigorosame­nte o horário, esquecendo o calor ou lutando contra o frio, ignoran- do o vento ou maldizendo a chuva, testemunha­ndo o passo apressado dos trabalhado- res, a correria dos estudantes, a viagem do sol e a luta do trânsito, no seu mundo de não olhar para as caras nem para as roupas, não interessar a cor ou a raça ou a etnia, o penteado, a barba ou bigode, o fato ou o jeans, não precisar de olhar nos olhos para falar. Sentado numa pedra, numa lata, num banco de madeira ou mesmo no cimento do passeio, numa escada, numa entrada ou num canteiro, em pares ou sozinho ou mesmo em pequenos grupos, escolhendo estrategic­amente o local, longe da concor- rência e perto do chão. Com a cara baixa ganha o seu pão, não por serventia ou humi- lhação, não por medo ou vergonha, mas porque tem que fitar os pés para tomar deci- sões. Não vê olhos nem vê corações, dirige- se aos peões com a sua voz em frases cur- tas. Não precisa muito dizer, somente dar o seu serviço dar a conhecer, o brilho, o brilho, repete vezes sem conta.

O contraste da sua figura com a de quem recorre aos seus serviços, é o brilho do fato com a brancura da poeira entranhada na sua pele, o esbranquiç­ado das suas canelas, o modernismo do sapato a engraxar com a velhice dos seus sapatos, dos seus chinelos ou a ranhura dos seus calcanhare­s, a correria de quem procura um futuro com o seu presente estagnado, parado, sem futuro, sentado ali na esquina, no canteiro, na calçada, na lata ou no banco, a segurança de um emprego com a inseguranç­a do que será para si o daqui a uma hora, logo a tarde e mais tarde, quando a noite chegar, o conhecimen­to académico e profission­al com o seu débil conhecimen­to das letras e palavras, o ensino primário ou secundário mal acabado ou uma escola inexistent­e há muitos anos, a garantia de 2 ou 3 refeições com a incerteza de um estômago satisfeito, o acolhiment­o de um lar com a deses- truturação da sua família, uma residência acolhedora com um bairro social, com violência e miséria, uma viatura com a luta do tá- xi ou ainda a longa caminhada, a refeição quente com o que encontrar na rua, o amor de um parceiro com a pros-tituição juvenil e irresponsá­vel, o divertimen­to com a droga rasca e barata, o refri- gerante com o álcool adulterado, a garantia de um futuro com a promessa de um futuro, um cérebro polido com um cérebro empoeirado. Não deixa de lutar, não foge da luta, não tem uma mão, uma mão que o suporte. Aguenta o trabalho, patrão de si próprio, são futuros desengraxa­dos, para o polidor dos sapatos. Regressa dia após dia, variando e mudando de pouso, esperando umas moedas para o dia e para o futuro incerto. Não olha para o futuro, porque futuro pode não haver, não olha para as caras porque caras pode não as conhecer, não fica de pé porque de pé não trabalha, não entra na conversa porque com conversa não ganha. Olha para os pés, porque nos pés vai o sapato, o sapato que deixa a moeda, a moeda que compra o pão e a camisa, o pão e a camisa que garantem o presente, o presente que tem que viver, porque viver não sabe de outra maneira.

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Cristo Rei (Lubango)

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