Jornal Cultura

POESIA DE FEDERICO GARCÍA LORCA

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1910

Intermédio Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez não viram enterrar os mortos nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada nem o coração que treme encurralad­o como um cavalo-marinho. Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez viram a parede branca onde mijavam as meninas, o focinho do touro, a seta venenosa e uma lua incompreen­sível que iluminava pelos cantos os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas. Aqueles meus olhos no pescoço da égua, no seio trespassad­o de Santa Rosa adormecida, nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos, em um jardim onde os gatos comiam as rãs. Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos. Caixas que guardam silêncios de caranguejo­s devorados. No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade. Ali meus pequenos olhos. Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas quando buscam seu curso encontram seu vazio. Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!

PAISAGEM COM DUAS TUMBAS E UM CÃO ASSÍRIO

Amigo, levanta-te para que ouças uivar o cão assírio As três ninfas do câncer estiveram dançando, meu ilho. Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho e uns lençóis duros onde o câncer estava dormindo. O cavalo tinha um olho no pescoço e a lua estava num céu tão frio que teve de rasgar seu monte de Vênus e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos. Amigo, desperta, que os montes ainda não respiram e as ervas de meu coração encontram-se em outro lugar. Não importa que estejas cheio de água do mar. Eu amei por muito tempo um garoto que tinha uma plúmula na língua e vivemos cem anos dentro de uma navalha. Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco. O uivo é uma longa língua roxa que deixa formigas de espanto e licor de lírios. Já vêm até a rocha. Não alargues tuas raízes! Aproxima-se. Geme. Não soluces em sonho, amigo. Amigo! Levanta-te para que ouças uivar o cão assírio. Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol, membro da chamada Geração de 27, autor de livros como o Romancero gitano (1928), Poeta em Nueva York (1940) e Llanto por Ignacio Sánchez Mejía (1935). Morreu fuzilado, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, por ser homossexua­l. É um dos autores fundamenta­is da poesia do século 20 e exerceu in luência em diversos autores de língua espanhola, como Pablo Neruda. Sua lírica incorporou temas e recursos poéticos que vão das canções populares espanholas até a cultura cigana andaluza, o barroco de Góngora e o surrealism­o.

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