ESCREVER A HISTÓRIA DO FUTURO
Os termos “infância” e “criança” são termos enganadores. A palavra “infantil” é mesmo utilizada como um adjectivo desclassi icativo. Quando alguém age com emoção, com imaginação ou com verdade, dizem-lhe que está a ser infantil. Como se isso fosse mau.
Por consequência, o género literatura infanto-juvenil é muitas vezes tratado com ligeireza e condescendência. “Escrever para crianças é fácil”, oiço dizer com frequência. Daí o terreno se encontrar pejado de historietas simplistas, desprovidas de mensagem, com um palavreado apatetado, cheio de onomatopeias… Quem assim fala e quem assim escreve revela entender muito pouco de literatura, e nada de crianças. Mas, tais histórias, não são inocentes, servem um propósito educacional.
Quando se trata de crianças nada é inofensivo ou inócuo. Seja aquilo que for, visual, falado ou escrito, tem sempre um impacto na formação da personalidade delas: ou confere conhecimento, ou desenvolve habilidades, ou inocula valores, ou promove atitudes. Ou sedimenta sentimentos e emoções. Na verdade, faz tudo isso. Esse impacto pode ser positivo ou negativo, pode construir ou destruir, pode manietar ou libertar. Mas tem- no sempre. Ou seja, falar de crianças é sempre falar de educação.
E a educação é algo que tem objectivos claramente delineados: preparar novos cidadãos, ou seja, ensiná-los a comportarem-se na natureza e na sociedade. A soberania de um país não está na qualidade do seu exército, está na qualidade da educação que presta às suas crianças.
E sendo a infância a arena por excelência da disputa entre os valores do civismo e os do egoísmo, a literatura infanto-juvenil é sempre um instrumento de educação. Ou deverei dizer uma arma?
Dependendo do tipo de cidadão que se pretenda criar, há várias maneiras de educar as crianças e, por consequência, de escrever para elas: pela ilusão, característica dos contos de fadas, para cultivar nelas a passividade e apatia; pelo medo, típico das histórias de terror, para incutir nelas a obediência e a subserviência à moral instalada; ou pela escolha, típica das histórias de aventuras e de amor, para estimular nelas a re lexão ética e o activismo social. Escrever para crianças é, pois, esculpir as páginas do futuro.
As crianças são seres complexos, que não devem ser tratadas com complacência nem condescendência. Elas são seres inteligentes, com vontade própria, com iniciativa e capazes de agir. E também de perceber as limitações e as manipulações dos adultos… Não se pode tratá-las, por isso, como seres ineptos e incapazes. Esqueceram-se, não é? De que vocês foram crianças! Agora são adultos, gente ma- dura, não é? Gente manietada e exaurida da liberdade de sentir, imaginar, criar e se emocionar e pensar. Pois, ao contrário de nós, as crianças possuem ainda toda a plenitude das suas capacidades, ainda não atrofiadas pelos preconceitos, medos e raivas que o processo educativo incutiu em nós. Muitas vezes, por via das histórias infanto- juvenis escritas por essas tais pessoas, que lemos ou que nos foram contadas.
Uma história infantil é, por essa razão, das obras mais complexas de realizar – à medida do grau de complexidade do seu destinatário. Escrever para as crianças não é, pois, pegar em papel e caneta e desatar a aplicar vocabulário, regras gramaticais e técnicas de escrita. É preciso ter a capacidade rara de falar com as crianças na linguagem delas, que só é possível em quem mantém a capacidade de ver o mundo da maneira como elas olham para ele: sem fronteiras. São capacidades que geralmente atro iamos com a idade. Porque queremos deixar de ser crianças e queremos que passem a considerar-nos maduros.
O que deve ter uma história infantil, então? Tudo o que tem de ter uma boa história para adultos: enredo, mistério e emoção. Mas a um nível de qualidade muito mais elaborado.
Diferentemente de uma história para adultos, que geralmente tem um propósito eminentemente lúdico, a literatura infanto-juvenil desempenha toda uma série de outras funções em simultâneo: ensiná-las a ler e a pensar e ensiná-las a ser e a estar. Pode é fazêlo para o bem, ou para o mal.
Um livro infantil tem, por isso, de ser sempre didático, visto que ao mesmo tempo que está a entreter, está a ensinar a ler ( o que exige rigor linguístico, e também o emprego de um vocabulário rico e diversi icado), estando simultaneanente a contribuir para lhes modelar a personalidade – transmitir valores éticos, promover atitudes cívicas.
As crianças são curiosas, têm uma sede de aprender insaciável. Por isso, um livro para elas tem que ser capaz de lhes mostrar coisas novas, que lhe deem o que pensar. E tem de conseguir fazer isso de forma lúdica, divertida. Tem de ter fantasia para estimular- lhes a imaginação e alimentarlhes a criatividade.
Uma história interessante tem de conter problemas e de lhes oferecer respostas, e situações de causa- efeito para as estimular a reflectir e as ensinar a compreender - em vez de as procurar condicionar a apenas aceitar e obedecer. Não há, pois, que ditar às crianças o que elas devem fazer, nem dar- lhes lições de moral, mas, antes, há que dar-lhes caminhos a escolher, caminhos para se encontrarem consigo mesmas e para enfrentarem e combaterem os monstros que permanentemente lhes saltam ao caminho com a firme intenção de impedir a libertação do que de melhor há dentro de cada um de nós.
A pergunta que não quer calar é: “Como é possível escrever coisa tão complexa e profunda para crianças? Isso está para além do entendimento delas!” Nada mais falso. O que é verdade é que não é para qualquer um a capacidade de o fazer.
É importante ter em mente que as histórias ditas “para crianças” não são para serem lidas pelas crianças. Na verdade nem sequer são para serem lidas. Elas são para serem encenadas, com expressões, gestos e vozes variadas, e em conjunto, por pais e filhos, avós e netos, adultos e crianças. Uma história infantil não é um livro, é um palco.
E se fazê-lo permite aos adultos explicarem palavras novas às crianças, permite também às crianças ressuscitarem nos adultos o encantamento, neles amordaçado, de olhar para o mundo com plena liberdade e sentirse em paz. Com a natureza e com a sociedade. E consigo mesmos.