Jornal Cultura

FRANCIS PONGE, POETA DAS COISAS NATURAIS

- OS PRAZERES DA PORTA

No Poema, Ponge diz que “o homem julga a natureza absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe a não ser pelo homem”. Ele projecta, idealiza o homem harmonizad­o com os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o ar.

“Francis Ponge é, por excelência, o poeta das coisas que exigem de inições, das coisas partidas, das coisas naturais, das coisas inanimadas e animadas. Ele descreve o universo, os meteoros, a chuva, o fogo. Encanta-se com os moluscos, ostras, caracóis. Busca a todo momento dar voz às coisas silenciosa­s. Traz à luz o mundo mágico da natureza. No Proemas, Ponge diz que “o homem julga a natureza absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe a não ser pelo homem”. Ele projecta, idealiza o homem harmonizad­o com os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o ar.”

Os reis não tocam nas portas. Não conhecem essa ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar- se em sua direcção para recolocá- lo no lugar - ter nos braços uma porta.

... A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cómodo; o corpo- a- corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.

Com a mão amiga retém ainda, antes de empurrá-la decididame­nte e encerrar-se - o que o estalido da mola potente mas bem azeitada agradavelm­ente lhe assegura.

O PÃO

A super ície do pão é maravilhos­a primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheir­a dos Andes.

Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzid­a para nós no forno estelar, onde, endurecend­o, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas... E todos esses planos desde então tão nitidament­e articulado­s, essas lajes finas em que a luz aplicadame­nte deita os seus lumes, - sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.

Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou lores são aí como irmãs siamesas solda- das por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas lores murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.

Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.

CHUVA

A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito diversos. No centro, é uma ina cortina (ou rede) descontínu­a, uma queda implacável mas relativame­nte lenta de gotas provavelme­nte bastante leves, uma precipitaç­ão sempiterna sem vigor, uma fracção intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuad­as. Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito da janela a chuva corre horizontal­mente ao passo que na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo toda a super ície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito ina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptí­veis ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitame­nte vertical, grosseiram­ente entrançado, até o solo, onde se rompe e espirra em agulhetas brilhantes.

Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma correspond­e um ruído particular. O todo vive com intensidad­e, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitaç­ão.

O repique no solo dos iletes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplica­m e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.

Quando a mola se distende, certas engrenagen­s por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.

O FOGO

O fogo estabelece uma classi icação: primeiro, todas as chamas se encaminham em uma direcção...

(Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço à frente, os pés rampantes)...

Depois, ao passo que as massas metodicame­nte contaminad­as se aniquilam, os gases liberados vão-se transforma­ndo numa só rampa de borboletas.

O PEDAÇO DE CARNE

Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, moinhos e lagares de sangue. Tubulações, altos fornos, cubas vizinhos de martelos pilões, coxins de graxa. O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-se.

Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.

E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas se resfriam.

Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reacções químicas se produzem, liberando odores pestilenci­ais.

A SONHADORA MATÉRIA

Provavelme­nte tudo e todos - e nós mesmos - não sejamos mais que sonhos imediatos da divina Matéria:

Produtos textuais de sua prodigiosa imaginação.

E assim, em certo sentido, poderíamos dizer que toda a natureza, inclusive os homens, nada mais é que uma escritura; mas certo tipo de escritura; escritura "não-signi icativa", já que não se refere a sistema algum de signi icação; já que se trata de um universo inde inido: falando claramente, "imenso", sem medidas.

Ao passo que o mundo das palavras constitui um universo inito.

No entanto, já que composto por esses objectos bastante particular­es e particular­mente comoventes, os sons signi icativos e articulado­s de que somos capazes, que nos servem "a um só

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PEDRO MACIEL (Trecho de um ensaio feito por Pedro Maciel, para o caderno "Verso & Prosa", do jornal O Globo)

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