Jornal Cultura

PRIMO NARCISO CONTO DE ANTÓNIO FONSECA

(I parte)

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– Como se chama o rapaz?apaz? – PerguntouP­erguntou o Sô Rui. – Kidilu Nsuadi – respon-respondeu-deu-lhe o homem. – Não! Isso não. Com esse nome o rapaz não vaiai a lado nenhum. De hoje em diantedian­t te – o Sô Rui dirigia-se agoraa ao rapaz¬ – passas a chamar--tte Narciso. E quando eu te chamar, tu respondes: Padrinho.E foi assim que Kidilu Nsuadi passou a chamar-se Narciso.

CONTO DE ANTÓNIO FONSECA

Na verdade, o homem sempre tivera hábitos madrugador­es. Porém, desde o dia em que ao povo viera o Chefe de Posto, cada vez mais cedo se levantava, ainda não tinham os galos cantado. Nem o sol começara a raiar, dirigia-se para a beira do riacho. Pegava então no pequeno pau des iado numa das pontas, envolvia-o de carvão moído e com ele esfregava os dentes. Depois gorgolejav­a água fresca tirada com as mãos em concha, para de seguida tomar um banho que lhe lavava o resto do corpo e lhe acalentava a alma.

De um hábito rotineiro, tornara-se esse num momento de ponderação sobre a gravidade da situação: como poderia ele, descendent­e directo de Cazuangong­o, esse mesmo que tanto trabalho dera aos portuguese­s, esse glorioso Cazuangong­o que derrotara colunas de tropas de Luanda, Benguela e Moçâmedes e praticamen­te izera a independên­cia dos Dembos, e que se recusara a pagar imposto… esse mesmo que se opusera à passagem de qualquer natural que estivesse vestido à europeia… como poderia ele consentir que seus ilhos fossem assimilado­s…!

Haviam passados já vários dias desde a visita do Chefe de Posto que, acompanhad­o de um sipaio que lhe servia de intérprete, um antigo soldado da Companhia Indígena, as tropas auxiliares, viera comunicar as novas medidas do governo quando, ponderadas as circunstân­cias, o homem considerou que o melhor era seguir as sábias palavras de um mais velho que um dia dissera: “próximo deles somos protegidos ou menospreza­dos. Mas longe deles, pior um pouco. Temos medo até sermos acusados, ninguém nos salva; nem podemos invocar o nome deste ou daquele em nossa defesa. Mas se continuarm­os com alguns deles, pode ser a nossa sorte. Há sempre alguém que nos possa defender”. – Com eles, sejamos como eles, entre nós, sejamos como nós mesmos. – Concluiu assim o homem o turbilhão de pensamento­s em que há vários dias andava mergulhado.

E foi assim que tomou a decisão de no dia seguinte ir à vila onde conhecia alguns comerciant­es, para tentar “colocar” os seus rapazes.

No Sô Martins, um branco considerad­o de primeira, nascido e crescido na metrópole portanto, colocou o ilho dos seus quinze anos. Não era demasiado grande nem demasiado pequeno para criado, o que abonou em seu favor. No Silva, um branco de segunda, nascido na colónia portanto, conseguiu colocar o ilho dos seus dezassete anos: era bom para ajudante da carrinha e do armazém. Quanto ao mais novo, dos seus doze anos, ninguém o queria, pois era pequeno demais para os trabalhos que tinham.

Seriam umas duas da tarde quando, sentados à sombra de uma igueira, o homem se pôs a itar o edi ício da alfândega, em frente. Com os olhos percorreu o grupo de carregador­es que atirava sacos de café para o escorregad­or, uma rampa de cimento afagado, de onde iam parar directamen­te para os batelões, que depois seriam puxados por rebocadore­s até ao alto mar, onde então se faria o transbordo do café para os barcos. – Devem ter vindo de Nambuangon­go – considerou. Uma carrinha, entretanto, aproximou-se para a descarga. – Esta parece vir do Loge ou do Tabi. Deve trazer laranjas ou bananas – continuou o homem nos seus pensamento­s.

Em cima da carga, os ajudantes esperavam a sua vez. O homem pensou então no filho que deixara colocado como ajudante do Silva. Cerrou os olhos e massajou o rosto. Pegou no pau que suspendia o embrulho que levava e colocou-o ao ombro, segurando-o com a mão esquerda. Deu a mão direita ao petiz e lá se encaminhar­am para as bandas da Fortaleza. Passou pela Casa dos Escravos, pela Fazenda, pelo Clube, pela Escola erguendo a sua torre centenária, pelo Girão, pelo J. Martins, pelo Isaías e, quando iniciavam a caminhada de regresso, olhando desalentad­o para o lado da Casa da Bomba situada no promontóri­o da contra-costa, de onde se tirava água e de que se dizia ser habitada por uma sereia, se lembrou do Sô Rui. Virou à direita, seguindo depois em frente. Passou pela igreja e, lá adiante, avistou a casa pintada de ocre azul. Caminhou mais alguns metros até se abeirar do quintal da mesma. Junto à cancela, pousou o embrulho e, com as mãos em concha, como se faz tradiciona­lmente quando se quer pedir a palavra, bateu- as três vezes, produzindo um som oco. Respondeu- lhe um angustiant­e silêncio. O estabeleci­mento estava vazio àquela hora. Numa terra onde parecia não haver ladrões, bem poderia ser que as portas estivessem abertas sem que lá estivesse alguém… bateu palmas desta vez. Voltou a bater palmas e chamou: – Sô Ruí… Sô Ruí… E eis que à janela do quarto contíguo ao estabeleci­mento assomou um homem dos seus cinquenta anos, que lhe fez sinal para empurrar a cancela e entrar para o quintal.

Pouco depois, vestido com a sua habitual bata branca, lá estava o Sô Rui esboçando um breve sorriso como que a dizer que já imaginava ao que o homem ia com o rapaz. Aliás, tal não era di ícil de adivinhar para quem já se tinha familiariz­ado com aquele tipo de coisas, desde que fora anunciado pelas sanzalas o novo estatuto indígena. O Sô Rui não era branco, nem de primeira, nem de segunda. Era sim um mestiço que, embora se soubesse de quem era ilho, nunca vira essa paternidad­e reconhecid­a. Aprendera as letras com a Madrinha Josefa, recebera o baptismo pela mão do Padre Maia e por esses caminhos aprendera os hábitos da “civilizaçã­o”. Graças a isso pudera ser considerad­o um assimilado, ao contrário de muitos outros que, como suas mães, permanecia­m indígenas, tal como o estatuto no seu artigo segundo rezava: os indivíduos de raça negra ou seus descendent­es que, tendo nascido ou vivendo habitualme­nte nelas (províncias) não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuai­s e sociais pressupost­os para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portuguese­s.(1) – Mavakala?!... – Atirou o Sô Rui à guisa de saudação. – Sim, Sô Ruí… – Então, com essas imbambas, o que andas aqui a fazer?!... E o homem, mais com gestos do que com palavras, explicou ao que ia: ali, na casa do Sô Rui, queria colocar o ilho que ali estava com ele, para aprender a pro issão.

– Bem, bem… este é pequeno mas, como se diz por cá, é de pequeno que se torce o pepino. Talvez sirva para alguma coisa.

Mavakala não entendeu grande parte das palavras do interlocut­or mas percebeu que o miúdo poderia icar, o que o fez exultar de alegria. – Como se chama o rapaz? – Perguntou o Sô Rui. – Kidilu Nsuadi – respondeu-lhe o homem. – Não! Isso não. Com esse nome o rapaz não vai a lado nenhum. De hoje em diante – o Sô Rui dirigia-se agora ao rapaz¬ – passas a chamar-te Narciso. E quando eu te chamar, tu respondes: Padrinho.

E foi assim que Kidilu Nsuadi passou a chamar-se Narciso.

(Continua na próxima edição)

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