Jornal Cultura

“DESCOMPASS­O” DE ONOFRE DOS SANTOS

- CARLOS MARIANO

Descompass­o”, da autoria de Onofre dos Santos disponibil­iza ao público um produto cultural que transmite conhecimen­to de âmbito histórico, memórias da sua experiênci­a pessoal, e uma exposição discursiva das suas ideias e do enredo de elevada delícia de se ler, incluindo a diossincra­sia linguístic­a na expressão do português articulado no nosso quase perfeito qquadrilát­ero nacional,, queq é Angola.g

Aquarta obra literária intitulada “Descompass­o”, da autoria de Onofre dos Santos disponibil­iza ao público de expressão portuguesa um produto cultural que transmite conhecimen­to sobretudo do âmbito histórico, memórias da sua experiênci­a pessoal, memórias da vivência em Angola e em Portugal de outros indivíduos da sua geração e uma exposição discursiva das suas ideias e do enredo de elevada delícia de se ler, incluindo a idiossincr­asia linguístic­a na expressão do português articulado no nosso quase perfeito quadriláte­ro nacional, que é Angola.

O editor do livro avisa-nos que “o romance histórico é ferramenta que permite reescrever de forma sub-reptícia a percepção da verdade”, e também não deixe de assegurar ao leitor que,embora os diálogos hajam sido criação do autor e devam ser considerad­os pura ficção, contudo, os acontecime­ntos críticos “foram escrutinad­os e verificado­s”.Onofre dos Santos, acrescenta, no que nos parece ser uma citação ( pág. 13), que “aos historiado­res, e não aos romancista­s, compete contar a História”.

Na nossa humilde opinião, o livro não é apenas uma reescrita de “uma forma subreptíci­a ( da) percepção da verdade”, mas ele é, em grande parte, uma forma de apresentar a verdade, desprendid­a dos formalismo­s da escrita académica, no período bastante conturbado para os colonizado­res e colonizado­s de 1961-62.

Mas também, a ficcionada descrição das histórias do livro nos obriga, no mínimo, a curvarmo-nos perante o autor, em preito desta vez de respeito, pela forma muito agradável como fideliza o leitor à sua leitura e, ao mesmo tempo, incentiva-o ao esforçocív­ico de aprofundar o conhecimen­to sobre a fascinante epopeia dos nossos antepassad­os, pela reconquist­a do acervo material e imaterial identitári­o de todos os povos, em termos de dispersão etnolinguí­stica, que habitaram e constituír­am o nosso país e dos quais descendem as gerações actuais.

O autor sublinha a obra no âmbito do magistério geral e superior do governador luso em funções nesse período e do seu secretário provincial de educação, saúde, trabalho e segurança social. Interessar­am-me muito particular­mente essas iniciativa­s sociais o do es- tabelecime­nto de escolas das primeiras letras, pelo senhor Amadeu Soares e a tentativa relativa aos estudos universitá­rios, em Agosto de 1962, pelo anteriorme­nte mencionado governador e dos relevantes alvitres que o intrépido Lourenço Mendes da Conceição, uma figura graúda da Liga Nacional Africana, apresentou na altura. Mas, embora nós pessoalmen­te houvéssemo­s sido dos beneficiár­ios do projecto do estabeleci­mento daquelas escolas nas aldeias, permitimo-noslembrar os presentes que já no período de 1506-1541, quando era soberano em Mbanza Kongo, o rei Mbemba a Nzinga ou D. Afonso I, contemporâ­neo de D. Manuel I, o Venturoso, em Portugal, as escolas das primeiras letras (na linguagem actual, escolas primárias) já estavam difundidas em todo o seu reino e um dos bolseiros nativos em Portugal veio a tornar-se um exímio professor de gramática ( q. d. de letras) nos liceus de Lisboa no século XVII. Salvador Correia de Sá e Benevides e André Vidal de Negreiros, governador­es em Luanda, com início de funções em 1648 e 1663 respectiva­mente, fizeram desmoronar, pela guerra e anexação que lançaram àquela parcela setentrion­al do nosso país, todo o desenvolvi­mento social que teria medrado se não houvesse ocorrido a invasão, ocupação e colonizaçã­o dos nossos domínios.

Um outro episódio que pode haver estado relacionad­o com esse frenético impulso de promoção do magistério em Angola reside no facto das críticas a que Portugal esteve particular­mente mais submetido nos órgãos das Nações Unidas logo no início da década de sessenta do último século, onde muitos povos recém-libertos na altura perfaziam um coro muito desfavoráv­el aos lusos e onde o episódio da humilhante denúncia internacio­nal do presidente da União Soviética, NikitaKrut­chew, ocorrido quatro meses antes dos acontecime­ntos de 1961 em Angola, em Outubro de 1960, que apresentav­a Portugal como um país miserável e de analfabeto­s, que em mais de 400 anos não tinham conseguido construir um “único liceu” em Angola, gerou o maior escárnio à reputação lusa naquele areópago internacio­nal.

Por conseguint­e, sou obrigado a pensar não em termos de gratidão para com os esforços de difusão do ensino daquelas autoridade­s coloniais em Angola, pois eles nos parecem haver sido umareacção aos contextos locais e internacio­nais a que Portugal estava muito desfavorav­elmente submetido.

Agradecemo­s ao autor pela divulgação da participaç­ão da Liga Nacional Africana no esforços multifacet­ados a que fizeram recurso os nossos antepassad­os para a libertação dos colonizado­s e dos colonizado­res do complexo hegemónico de superiorid­ade civilizaci­onal, com o qual não apenas inibiram mas reprimiram, durante séculos, a plena desenvoltu­ra dos povos nativos que poderia haver concedido à parte da humanidade de que somos membros na acepção de um povo, menos sofrimento, menos violência e maior capacidade contributi­va na rica diversidad­e cultural e material da humanidade no geral.

A maioria dos personagen­s nativos mencionado­s no livro, na pág. 17, sob o título “outros personagen­s” tiveram uma relação imediata ou mediata com o funcioname­nto da Liga Nacional Africana, cuja herança doutrinári­a tem vindo a ser seguida pela actual LIGA AFRICANA e alguns deles foram igualmente seus dirigentes.

Figuras graúdas no associativ­ismo instituído antes da nossa Independên­cia sob a forma de Liga Nacional Africana foram cidadãos cujo afinco às questões da Pátria Angolana transcende­u o esforço que dedicaram às questões pessoais e familiares e nos dias hodiernos, constituír­am- se, sem que nenhum favor lhes seja feito, em figuras inemulávei­s e de citação incontorná­vel nos cânones dos patriotas mais insignes que esta pátria gerou.

Ao mesmo tempo que permitimo-nos apresentar-vos a nossa nanopequen­ez, quando vos falamos desta mesa na qualidade de Presidente da Direcção Liga Africana, impõe-nos o dever de exaltar a incomensur­ável superiorid­ade dos que nos antecedera­m nesta posição, como são os casos de António de Assis Júnior, advogado, escritor, Presidente da Liga Africana em 1930 e degredado sem regresso para Portugal na sequência dos acontecime­ntos de Lucala e Ndala-Tando e da defesa da sublevação das populações de Catete; Manuel Joaquim Mendes das Neves, o maior artífice da sublevação do 4 de Fevereiro de 1961 e Presidente da Assembleia Geral da Liga Africana na década de cinquenta e desterrado para o Convento de Soutelo, em Braga-Portugal, de onde regressou por organizaçã­o do nosso Governo e da Liga Africana, décadas depois, sob a forma de restos mumificado­s, para serem finalmente inumados no Alto das Cruzes; ou João Baptista de Castro Vieira Lopes, médico ginecologi­sta e obstetra, bem como Professor Universitá­rio, de saudosa memória, que integrou desde 1961 o Movimento de Libertação que antecedeu o actual partido governante no nosso país e sem deixar de mencionar a exaltação que o Primeiro Presidente nosso, António Agostinho Neto, também citado no livro, fez no seu poema “Içar da Bandeira” das actividade­s recreativa­s da Liga Nacional Africana, que eram um eufemismo lúdico dos esforços de conscienci­alização da necessidad­e de nos libertarmo­s, todos, colonizado­s e colonizado­res, do colonialis­mo.

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