Jornal Cultura

A UTOPIA DOS LOUCOS NO REINO DAS CASUARINAS

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No romance de José Luís Mendonça publicado em 2014, O Reino das Casuarinas, dá-se voz a várias iguras marginaliz­adas das ruas de Luanda. Entre indigentes, vagabundos, párias e aleijados, o narrador Nkulu (antigo combatente de guerra mutilado) vai apresentan­do os sete personagen­sfundadore­s do reino utópico: Primitivo, Rainha Eutanásia, Povo do Volvo, Razões da Cruz Vermelha, Profeta, Katchimbam­ba, e PAM.

Todas estas iguras são considerad­as socialment­e loucas, uma vez que, por várias razões, foram enviadas para o Hospital Psiquiátri­co de Luanda, de onde fugiram visando perpetuar uma nação quimérica na ilha da capital angolana. Esta atitude radica no cariz alegórico do romance: após a sua leitura, icamos plenamente convencido­s que são os personagen­s loucos a pensar de maneira correcta, ao passo que os destinos de Angola são – na realidade – dirigidos pelos verdadeiro­s loucos.

Gostaríamo­s aqui de estabelece­r conexão com um ensaio de Pires Laranjeira acerca da poesia de um autor adequado nesta matéria, o angolano António Jacinto, várias vezes citado e parafrasea­do no livro de Mendonça. Em «Marx, Lacan, e Foucault haviam de gostar da subalterni­dade e pré-loucura em António Jacinto», Laranjeira realça que a loucura do poeta se revela “um patamar de humanidade igual ao daqueles que não são atingidos por essa energia geradora de um estado de excepção, um patamar de actuação no mundo que não difere de outros modos de actuação, senão pela sua peculiarid­ade de relação com o signi icante, com o discurso, como se discurso não fosse o discurso do Outro, mas o discurso do mesmo, do ensimesmam­ento, de uma espécie de autismo absoluto (no caso da esquizofre­nia), o que permitiria todo o tipo de discurso, por mais imprevisív­el que possa ser.” (LARANJEIRA, 2015: 59)

Ora, é precisamen­te esta peculiarid­ade de discurso que podemos observar nos personagen­s loucos de O Reino das Casuarinas. Para lá do princípio de conscienci­alização que preside um arquétipo tão emblemátic­o como o «Poema da alienação» (“o meu poema sou eu-branco\montado em mimpreto\a cavalgar pela vida”) de António Jacinto, o Reino em causa tenta evidenciar uma possibilid­ade de desalienaç­ão, visto a consciênci­a discursiva dos seus personagen­s-fundadores, social e politicame­nte, ser também uma consciênci­a libertador­a, profética, e visionária.

Por conseguint­e, os personagen­s do romance demonstram conhecer a situação histórica e social em que se en- contram, legitimand­o a iniciativa empreended­ora do Reino como resposta criativa à sua condição externa e interna de alienados. Esta “expressão da alienação” (LARANJEIRA: 56) é levada a cabo não apenas na rebeldia do ato de fundação do Reino, mas, igualmente, pelo próprio José Luís Mendonça, ao engendrar, de forma tão sui generis, esta Utopia dos Loucos numa comunidade livremente imaginada.

A loucura do Reino das Casuarinas não se trata, portanto, de um recurso simplesmen­te idealista, mas antes de raiz marcadamen­te ontológica, pois, como escreveu Foucault: “o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro não lhe é dado senão na forma de alienação” (FOUCAULT, 1972: 548). Isto torna-se evidente no inal da obra, quando um dos elementos do Reino das Casuarinas, o sem-abrigo Katchimbam­ba, como forma de protesto contra o primeiro processo eleitoral da nação, envenena o café conservado numa velha lata de leite Nido, partilhada por todos, suicidando-se e assassinan­do os restantes cidadãos. Visivelmen­te, este aniquilame­nto premeditad­o simboliza uma consciênci­a de impossibil­idade de realização dos pressupost­os sonhados pelos elementos fundadores do Reino.

“Não é doido quem quer”, pode lerse numa frase de Jacques Lacan, utilizada como epígrafe por António Jacinto noutro poema sintomátic­o («Loucura»), e que nos remete para a pulsão de morte contida no arrojo existencia­l dos criadores, manifestan­do-se em possessões exacerbada­s e atitudes disruptiva­s, muitas vezes tendentes a contradisc­ursos desa iadores – género de libelos que, no romance em causa, se encontram inseridos nos extractos do bloco-de-notas obliterado de Primitivo.

Por outro lado, se nos reportarmo­s a outra frase lapidar de Lacan referida por Pires Laranjeira (“O ser do homem, não somente não pode ser compreendi­do sem a loucura, mas ele não seria o ser do homem se não contivesse em si a loucura como limite da sua liberdade”), percebemos que a loucura é uma inevitabil­idade resultante do processo criativo de procura da verdade e do ser.

Assim, podemos aferir da narrativa de José Luís Mendonça que os fundadores do Reino das Casuarinas se apresentam imbuídos de uma loucura que deseja ardentemen­te criar uma nação ideal, partindo do projecto falhado de um país africano no qual são marginaliz­ados. Contudo, um dos fundadores, ao ser afastado da corrida para Primeiro-Ministro, toma cons- ciência que o Reino – dado o seu carácter utópico - não poderá cumprir as etapas de construção a que se propôs, gerando-se uma lacuna de sentido na subalterni­dade da sua loucura, intermitên­cia psicológic­a transforma­da numa pulsão de morte “como compensaçã­o para a privação da liberdade absoluta do ser”. (LARANJEIRA: 62)

Numa última instância, os cidadãos da nação das casuarinas sabem que foi devido a este género de ousadias antipoder que “João Baptista e Thomas More perderam as cabeças”, sendo o britânico referido como modelo, visto representa­r o primeiro ideólogo do Socialismo Utópico. Por isso, se a data de fundação do Reino é postulada por José Luís Mendonça a 11 de Novembro de 1985, o autor di icilmente poderia forjar melhor simbolismo, por oposição, para o desapareci­mento prematuro do novo país: a morte dos cidadãos-fundadores ocorre exactament­e no dia 14 de Abril de 1987, ou seja, o Dia da Juventude, em memória de Hoji ya Henda, herói da luta de libertação. _______________________

Paulo Branco Lima Bibliogra ia

(Mestrando em Literatura de

Língua Portuguesa: Investigaç­ão e Ensino – Universida­de de Coimbra)

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FOUCAULT, Michel, Histoire de la folie, Paris, Gallimard, 1972

LARANJEIRA, Pires, Marx, Lacan, e Foucault haviam de gostar da subalterni­dade e pré-loucura em António Jacinto, in António Jacinto e a sua época. A modernidad­e das literatura­s africanas em língua portuguesa, Lisboa, Centro de Literatura­s e Culturas Lusófonas e Europeias – Faculdade de Letras da Universida­de de Lisboa, 2015, pp. 55-65

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