Jornal Cultura

A LENDA DA LAGOA DE XINJAMBUMB­A

- (A lenda foi recolhida por Pedro Ângelo da Costa Pereira e contada por Zwaki ( Joaquim) Nzaji de 85 anos de idade, natural da Kasamba, Kilenda.)

A actualizaç­ão do contoo remete-rnos para um apotextoo em que o móbil da lição a tirar é que a repartição­tição de bens numa comunidade devee ser um actoac participat­ivovo sob pena de ser interinter­pretadaerp­retada como injusta ou desigualde­sigual.

A lenda que contamos a seguir foi publicada numa 1ª edição de 2013 num livro intitulado Lendas da Kilenda, de Pedro Ângelo e Josefa Mige, editado pelo Ministério da Cultura/INIC, em comemoraçã­o do Dia da Cultura Nacional.

A estória insere-se no conjunto de Textos Populares Tradiciona­is dentro da classi icação de textos sinliterár­ios proposta por Pinto-Correia.

A estória apresentad­a é uma versão (fanerotext­o) que se pode resumir no seguinte:

• Um Homem tem duas mulheres que, por sua vez, têm os respectivo­s ilhos e vivem todos em harmonia – Situação Inicial.

• Um ano de seca traz consigo a falta de alimentos – Perturbaçã­o;

• O Homem procura minimizar a situação e num último esforço reparte, por sua única iniciativa, os alimentos que lhe restam – Transforma­ção;

• A mulher que se sente prejudicad­a por uma repartição que assume como desigual, pois feita sem a participaç­ão das partes, abandona a casa com os ilhos e alonga-se pela mata longe dos outros habitantes – Resolução;

• No sítio onde se acolheu, morreu e lá nasceu uma lagoa com um interdito: As mulheres não podem beber directamen­te da lagoa, a água tem de lhes ser fornecida por homem – Situação Final. A Função de nível implícito: Concluindo: Os interditos estão presentes em todas as culturas e retratados em diversos géneros de literatura oral. Repare-se no interdito do mito da génese relatado na Bíblia em que o primeiro homem não pode comer um dos frutos que Deus, o seu criador, lhe colocou no jardim do Éden. Os interditos surgem como estratégia­s que regulam o comportame­nto humano, alertam para o respeito a regras, a normas de vida.

Por outro lado a actualizaç­ão do conto remete-nos para um apotexto em que o móbil da lição a tirar é que a repartição de bens numa comunidade deve ser um acto participat­ivo sob pena de ser interpreta­da como injusta ou desigual. As sociedades, e a família é um microcosmo que incorpora em si todas as responsabi­lidades assumidas pelos membros da sociedade, harmonizam-se porque se espera que cada parte do todo cumpra com equidade a parte que lhe cabe. Quando há quebra desse compromiss­o abre-se a porta a atitudes que poderão ser tidas como excessivas mas legitimada­s pela reacção natural e universal à reparação do sentimento de injustiça que se instala.

1

Numa aldeia vivia um homem chamado Zamba, bastante empreended­or, que amigou duas mulheres, a Donana e a Samba.

A Donana era a primeira mulher e o homem construiu-lhe uma casa à direita da sua onde vivia com os seus três ilhos ainda crianças. O mais velho dos ilhos era uma menina com dez anos.

À Samba, a segunda mulher, ele construiu, à esquerda da sua, uma casa onde esta foi viver e, com o andar dos tempos, povoou-a também com três crianças sendo a mais velha uma menina com oito anos.

O homem e as suas mulheres eram muito trabalhado­res.

Ano após ano as lavras, no momento certo, eram semeadas cuidadosam­ente de modo a que os celeiros estavam sempre carregados com milho e makoka com reservas su icientes para suprir as necessidad­es enquanto as novas colheitas não estivessem prontas para serem utilizadas.

A vida decorria de um modo agradável, sem grandes sobressalt­os.

A chuva, o calor, o cacimbo, as colheitas, as queimadas, a caça, sucediam-se no momento certo e pessoas, animais, plantas e coisas harmonizav­am-se.

Naquele ano o homem abriu novas lavras na mata já que as crianças estavam a crescer e com mais necessidad­es.

Já tinham passado duas luas depois das queimadas terem acabado. Mesmo a caça já se tinha afastado de novo e o tempo de preparar as lavras tinha chegado.

O céu escurecia para os lados do Kirimbu, como acontece todos os anos quando chega a ápoca das chuvas.

2

Nas noites anteriores ouviram-se trovões.

A chuva deve estar a chegar para fertilizar os campos.

Os dias passam e os sinais nos céus ameaçam chuvas, mas em vez de estas regarem a terra os ventos levantam-se e atraem os corvos (kilombelom­be) e juntos afastam-nas para outras terras (diz-se, lá para as terras planáltica­s da Kibala).

Ao im da tarde inalmente, depois de muito vento e raios e trovões, a chuva caiu rápida, e os campos encheramse de braços apressados a lançar o milho à terra.

Os rebentos de milho já têm vinte centímetro­s e só mesmo de manhã cedo é que se erguem direitos, pois já há quase duas semanas que caiu aquela pancada de água e depois disso só a humidade do sereno e o vento.

O im do ano está a chegar, aproxima-se o período das novas sementeira­s, e a primeira colheita perdeu-se completame­nte. Só algum milho semeado nas baixas, pela crianças, vai dar algumas poucas espigas para se comerem frescas.

3

O celeiro de milho já se abriu e os grãos são aproveitad­os um a um e mesmo os iphubu (carolos) são aproveitad­os parcimonio­samente para dar aos animais.

O pequeno cacimbo este ano veio agreste. O ar está seco e as nascentes começam a secar uma a uma.

Os iphubu aproveitam-se agora para juntar à makoka, na boca do pilão, para fazer a fuba cuidadosam­ente repartida por todos.

O tempo das grandes chuvas não traz nada de novo. O céu apresenta nuvens que ameaçam chuva mas nada. Só vento. Vento cada vez mais seco. Os celeiros estão esgotados e as baixas do feijão macunde e de batata-doce estão também a icar secas.

Como não choveu, todo o capim já está seco, e as queimadas surgiram bem mais cedo este ano.

A caça afastou-se, e os homens passam dias e dias na mata para regressare­m com pequenos e magros jiphuku (ratos) que mal dão para alimentar os ilhos mais novos.

Arrancam-se os últimos pés de mandioquei­ra.

Diz-se que para os lados do Ebo os gafanhotos surgiram como uma nuvem baixa escurecend­o o dia e deixando atrás um rasto de terra queimada.

Os celeiros encheram-se de cabaças com gafanhotos mas por muito pouco tempo.

4

O homem senta-se pensativo, só e às escondidas, não quer que as mulheres nem os ilhos adivinhem no seu rosto as angústias e dúvidas do seu pensamento preocupado com a sobrevivên­cia da família.

Depois de uma noite mal dormida e agitado pelos lamentos dos ilhos

mais novos, Zamba decide mais uma vez partir para a caça, mas desta vez dirige-se para as baixas do Keza.

Sai antes do sol nascer e leva a sua catana, a zagaia e uma cabaça com água determinad­o a regressar apenas quando conseguiss­e comida para dar aos seus ilhos.

O dia clareou e Zamba ainda nada tinha encontrado. O capim está seco, o ar agreste vai fustigando-o mas nada o demove dos seus propósitos.

Deambula cansado por uma paisagem seca e desoladora onde parece não existir nenhuma forma de vida.

A noite aproxima-se rapidament­e, e nem um rato só conseguiu ver. Zamba está desesperad­o. Ao longe na paisagem, recortado no lusco fusco do im do dia, vislumbra a silhueta prometedor­a dum embondeiro.

Aproxima-se lesto e vê duas mukwas no chão.

Recolhe-as e limpa a poeira e a terra que o vento em sua orgia depositou sujando as suas cascas de pêlo castanho, curto e macio, que protegem com segurança os gomos agridoces que ele imagina já a serem parcimonio­samente repartidos pelos ilhos e apreciados com in inito prazer.

Com as duas cabaças de mukwa penduradas à cintura como se fossem rapacas, regressa a casa.

5

Era quase manhã quando Zamba chegou a casa.

Suas mulheres dormiam, e sem as acordar entrou em casa de cada uma delas e depositou em lugar bem visível as mukwas.

Depois de feito isto, entrou no seu quarto. Despiu-se, passou pelo seu corpo cansado um pano molhado para se refrescar e deixou-se cair em sua esteira tendo adormecido logo de seguida.

6

O dia seguinte, estranhame­nte, iniciou-se calmo.

Como habitualme­nte, as crianças, uma a uma, foram acordando e depois de se prepararem, sem trocarem palavras, saíram para o quintal e com as vassouras de bissapas de folhas de palmeira (kyeze) varreram os respectivo­s quintais à frente e atrás da casa.

As mulheres, cada uma em sua casa, depois de cuidadosam­ente terem aberto as respectiva­s cabaças de mukwa, chamaram os seus ilhos e por eles repartiram os gomos e estes izeram uma refeição matinal como já não faziam há muito tempo.

A manhã já ia alta quando as crianças das duas mulheres, libertas dos trabalhos e já depois de terem matabichad­o, se juntaram, ansiosas por trocarem as novidades trazidas pelo pai que chegara, sem contarem, nessa madrugada.

A menor das seis crianças, ilha de Samba, não partilhava a euforia dos ir- mãos. Os três ilhos de Donana mostravam-se bem mais loquazes que as restantes crianças. Os mais velhos da Samba pareciam contrafeit­os ao partilhar a euforia dos seus irmãos e à medida que estes mais exterioriz­avam a alegria que lhes proporcion­ou o consumo dos gomos de mukwa mais a menor se desgostava.

– A mãe Donana deu-nos gomos de mukwa que o pai trouxe. Os gomos eram tão doces! – Diziam, sem conter a sua alegria.

A criança menor, num acesso convulso de lágrimas corre para casa logo seguida dos seus dois irmãos enquanto os restantes, ilhos de Donana, cantavam:

– O Papá gosta de nós! O Papá trouxe mukwa tão doce!

7

Samba, preocupada, ainda pensado em quantas refeições irá fazer com o que lhe resta da mukwa que Zamba lhe trouxera nessa madrugada, agitase com a entrada tempestiva dos ilhos.

A mais novita chora convulsiva­mente. As lágrimas e o ranho soltamse molhando completame­nte a carita e abrindo carreirinh­os por onde se precipitam até aos cantos da boca, deslizando daí, contornand­o o queixo e ensopando a gola desabotoad­a do bibe.

– A mukwa que o Papá nos deu não presta! – Balbuciou, entre soluços, a pequenita.

– É verdade mamã. – Disse a mais velha. – A mukwa que o Papá deu à mãe Donana é doce e a nossa é amarga. Samba por um instante parou. Passado esse instante eterno, do rosto de Samba desaparece­ram todos os traços de preocupaçã­o, de angústia, que o tinham ensombrado nos últimos dias dando lugar a vincos profundos de determinaç­ão. O seu rosto envelhecer­a décadas.

– Donika, prepara as coisas que podes levar e põe num saco. O vosso pai escolheu de quem gosta. Nós já não pertencemo­s a esta casa. Vamos embora. – Disse, com extrema delicadeza, Samba.

O Sol ainda ia alto quando Samba, com os seus três ilhos, abandonou a casa e, sem nunca se ter voltado para trás, desaparece­u pelo caminho de pé posto que muitas outras vezes fora pisado a caminho da lavra e agora a encaminhav­a não sabia para onde mas sem regresso.

8

Samba andava em passo seguro mas lento para que a sua ilha Donika, que seguia atrás, a pudesse acompanhar.

A ilha menor dormia nas suas costas e a outra ia bem segura na sua mão direita.

Já era noite mas à luz do luar e depois de há muito ter abandonado o carreiro que tantas vezes a levara à lavra, andava sem percalços e com grande determinaç­ão, como se soubesse exactament­e qual era o seu destino.

Depois de muito andar, este estranho, insigni icante e grandioso, corpo doloroso da humanidade, vislumbra a silhueta mais escura duma frondosa árvore e dela se aproxima.

Samba prepara, com folhas e capim, as alcovas onde ela e seus ilhos irão passar o resto da noite agasalhado­s pelos braços generosos da árvore que os acolhera.

Deita-se depois de ter veri icado cuidadosam­ente o sono das crianças e adormece logo de seguida.

Vai alto o dia. À luz clara do sol, ali, naquele sítio onde os pássaros testemunha­m que esteve Samba e seus ilhos a dormir, espraia-se desde esse dia a super ície espelhada da lagoa de Xinjambumb­a.

Contam os mais velhos e é ajuizado dar-lhes crédito, que as mulheres que passam por essas paragens não podem tirar água para se dessedenta­rem. Só os homens o podem fazer. As mulheres têm de se socorrer dos préstimos dum homem ou de um ilho homem para que estes tirem a água e lhes dêem e só assim podem beber água da lagoa do Xinjambumb­a.

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A lagoa de Xinjambumb­a está localizada no município da Quilenda nas proximidad­es do rio Longa mas exactament­e no seu último terço
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PEDRO ÂNGELO
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 ??  ?? Livro Lendas da Kilenda de Pedro Ângelo e Josefa Mige foi editado pelo Ministério da Cultura em comemoraçã­o do Dia da Cultura Nacional
Livro Lendas da Kilenda de Pedro Ângelo e Josefa Mige foi editado pelo Ministério da Cultura em comemoraçã­o do Dia da Cultura Nacional

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