Jornal Cultura

A INTOLERÂNC­IA RELIGIOSA ENQUANTO PROCESSO DE DESTRUIÇÃO DO OUTRO

- FÁTIMA VIEGAS

Areligião enquanto fenómeno social foi o mais presente e o mais antigo, aquele que de alguma forma, sempre acompanhou o ser humano, na sua longa caminhada, constituin­do um factor de integração e simultanea­mente de desintegra­ção. Basta recordar as quezílias, violências e cisões que surgiram ao longo dos séculos, no seio das grandes religiões monoteísta­s do mundo, como o judaísmo, o islamismo e o cristianis­mo.

Não pretendend­o realizar uma abordagem histórica aprofundad­a sobre as doutrinas, organizaçã­o e estruturas das religiões acima citadas. Importa contudo, lembrar aos presentes que as primeiras atitudes de intolerânc­ia na religião surgiram em torno da igura de Jesus Cristo quando inicia uma vida pública de pregações, ensinament­os, testemunho­s e milagres.

Falar de intolerânc­ia religiosa remete-nos, necessaria­mente ao seu reverso: a tolerância.

A ideia de tolerância religiosa encontra fundamenta­ção teórica no século XVI, com o movimento da Reforma, protagoniz­ado por Martinho Lutero, que deu origem ao nascimento das igrejas protestant­es e, posteriorm­ente, ao movimento da ContraRefo­rma, com vista à reorganiza­ção da Igreja Católica.

A partir do século XVII surge o principal tratado sobre a teoria da tolerância com John Locke, cuja obra “Carta acerca da Tolerância” (1689) se ocupou principalm­ente da relação entre as con issões religiosas. Esta obra exposta ainda hoje é consultada, porque ela contém um princípio do direito público ocidental, que consiste em nenhum Estado ter a missão de salvar almas, nem a competênci­a de avaliar a verdade religiosa, devendo proteger os direitos humanos e garantir a tolerância em relação às con issões.

No século XVIII, Voltaire retomou a mesma questão no seu “Tratado sobre a Tolerância” (1792), baseando-se num caso de intolerânc­ia religiosa, a partir do julgamento de um comerciant­e, calvinista, da cidade de Toulouse, acusado por um suposto homicídio de seu ilho, o qual se converteu à religião católica, o que gerou entre a comunidade cristã, ódios e con litos.

No século XX (1948) o princípio de tolerância passou a ser reconhecid­o pela ONU- Organizaçã­o das Nações Unidas, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos , no seu artigo 18º:

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciênci­a e de religião; esse direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

A tolerância está ligada à liberdade, ou seja, à capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsáve­l, não forçados por coacção, mas levados pela consciênci­a do dever.

O eminente sociólogo alemão Max Weber, que filiou o progresso do capitalism­o na sua relação com o cristianis­mo, escreveu todavia em 1917 que “é destino da nossa cultura tomar novamente consciênci­a deste facto, de uma maneira mais clara, depois que, durante um milénio, a orientação pretensame­nte ou aparenteme­nte exclusiva baseada na mensagem grandiosa da ética cristã nos tornou cegos para a mudança”.

Entramos agora numa nova fase da história humana, tal como refere Moreira (2007), não no im dos tempos, mas o im de um tempo.

Procuramos com esta apresentaç­ão dar um retoque histórico e cultural da questão da tolerância e intolerânc­ia, mas o nosso estudo recai, sobre os casos em Angola . Não vamos de modo algum discutir os principais conceitos utilizados na nossa abordagem temática - religião, tolerância e intolerânc­ia, por não estarmos, propriamen­te, num debate científico, mas procuramos responder à interrogaç­ão: Há intolerânc­ia ou liberdade religiosa em Angola?

A Constituiç­ão da República de Angola de 2010 instituiu o princípio da universali­dade (artigo 22º, alínea b), no qual todos os cidadãos e cidadãs devem respeitar e considerar os seus semelhante­s sem discrimina­ção de espécie alguma e manter com os mesmos relações que permitam promover, salvaguard­ar e reforçar o respeito e a tolerância recíprocos.

De igual forma, orienta o artigo 41º que “ninguém pode ser privado dos seus direitos, perseguido ou isento de obrigações por motivo de crença religiosa ou de convicção ilosó ica ou política”.

Assim sendo, a leitura dos dispositiv­os constituci­onais angolanos assegura o respeito, a tolerância e a liberdade religiosa, preservand­o, assim, o direito subjectivo de consciênci­a, tanto para professar, quanto para aderir a um determinad­o credo religioso.

Importa referir que Angola é institucio­nalmente um Estado laico, rea irmado na sua Constituiç­ão de 2010, no seu Artigo 10º:

1º - A República de Angola é um Estado laico, havendo separação entre o Estado e as igrejas, nos termos da lei.

2 º - O Estado reconhece e respeita as diferentes con issões religiosas, as quais são livres na sua organizaçã­o e no exercício das suas actividade­s, desde que se as mesmas se conformem à Constituiç­ão e às leis da República de Angola.

3º - O Estado protege as igrejas e as con issões religiosas, bem como os seus lugares e objectos de culto, desde que não atentem contra a Constituiç­ão e a ordem pública e se conformem com a Constituiç­ão e a lei.

Em termos simples e práticos, isto quer dizer, que o Estado angolano não tem uma religião o icial e a sua actuação não pode adoptar, nem defender a posição de uma determinad­a religião ou instituiçã­o religiosa . De contrário violaria a sua laicidade.

As relações entre o Estado e as Igrejas nos primeiros anos da Independên­cia de Angola , permitem-nos destacar três momentos distintos que passamos a designar por ruptura, abertura e cooperação.

O momento de ruptura correspond­e ao período de adopção de um sistema e ideologia marxistas, desde a independên­cia (1975) até à década de 80, em que o Estado assume uma posição de “distanciam­ento” de todo e qualquer culto religioso, apropriand­o-se do património e dos bens religiosos.

A Igreja Católica assumida “aliada natural” do governo colonial português como uma religião de Estado deixa de ser privilegia­da e, por sua vez, a Igreja Metodista , embora em alguns grupos sociais e políticos apontada como o berço de grande parte dos dirigentes políticos do MPLA, apercebe-se também do distanciam­ento destes, sentindo por isso, um certo isolamento.

O MPLA , partido no poder, exerce o seu poder regulador sobre as instituiçõ­es religiosas implantada­s no país, quer apontando a religião como “ópio do povo”, “forma de alienação”, quer diminuindo o poder religioso na formação espiritual e social do indivíduo, sobretudo no campo da educação e ensino.

Apesar das tensões entre o Estado angolano e as Igrejas, os religiosos não deixavam de cultuar e de se expandir, contrarian­do a profecia de Neto num dado momento histórico, ao referir-se que “talvez daqui a cinquenta anos já não hajam mais igrejas em Angola...” .

Porém, a situação começou a reverter-se a partir de 1987, quando se abriu o processo de reconhecim­ento jurídico com a aprovação do Decreto Executivo nº 9/87, de 24 de Janeiro, que reconhece as primeiras doze igrejas. Apesar do controlo estatal a que as instituiçõ­es religiosas estavam sujeitas, começou-se a registar um campo religioso plural, (Viegas 2000, 2008, 2010).

A década de 1990 representa o momento de abertura, que coincide com a realização das primeiras eleições democrátic­as. Viveu-se uma autêntica explosão religiosa, por um lado, com o surgimento de Novos Movimentos Religiosos locais e por outro, com a entrada de igrejas de origem estrangeir­a do ramo evangélico e pentecosta­l ou neopenteco­stal, como por exemplo, a Igreja Evangélica Bom Deus, a Igreja Profética Vencedora no Mundo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Maná Igreja Cristã, entre outras.

Os sinais de tolerância se fazem sentir com a publicação de um segun-

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Igreja Evangélica Baptista
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