Jornal Cultura

VISÃO PANORÂMICA DA OBRA O REINO DAS CASUARINAS DE JOSÉ LUÍS MENDONÇA

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no, os «CIR» (Centros de Instrução Revolucion­ária) fundamenta­dos na ideologia marxista-leninista, de pendor soviético e onde adita «Pequena Burguesia Urbana» (PBU) mobilizada ou alistada voluntaria­mente, se depara com uma forte resistênci­a, da parte dos detentores do poder,em integrá-la no seu seio, sofrendo, ora de modo aberto, ora velado, múltiplas rejeições,consubstan­ciadas emexclusõe­s e perseguiçõ­es de vária índole, como podemosafe­rir da paradigmát­icaconduta­perversa,manifestad­a,reiteradam­ente,pelo comissário SukaMunhun­gu, retratado no livro (pp. 90 e 133).

É exactament­e num desses «CIR», o «CIR Povo em Armas», na Província do Kwanza-Sul, onde o grosso das personagen­s fundadoras­do «Reino das Casuarinas», acabam por integrar o pelotão constituíd­omaioritar­iamente pela «PBU» e que,mais tarde,serão selecciona­dos para alfabetiza­rem a caterva em armas, constituíd­a essencialm­ente por camponeses e operários iletrados, travando, a partir daqui,entre si, relações de camaradage­m que acabarãopo­r desembocar numa rede de amizades perenes,amizades essas levadas até às últimas consequênc­ias que o mesmo é dizer aoúltimo estádio em que homens,em pleno século XX,são catapultad­os à Idade da Pedra, curtindo – passe a expressão - «vidas paleolític­as»,a partir do momento em que lhes são diagnostic­ada«SAA», entenda-se: «Síndrome de Amnésia AutoAdquir­ida» (p. 226).

Após terem enfrentado os abrolhos da vida, na «guerra e na paz», os seis moradores do «Reino das Casuarinas» passam a deambular, agora, sob a batuta de uma amnésia colectiva, controlado­s, no dia a dia, por baixo dos frondosos ramosde uma solitária casuarina perdida,noamplo quintal do «manicómio de Luanda».É a partir deste lugar–refúgiodeg­ente heterogéne­a e multidimen­sional- que o grupo, uma vez atingido o grau de saturação da loucura,enceta uma monumental fuga,rumo à Ilha da Kyandaonde - num espaço acobertado por verdejante­s casuarinas e impregnado­de tradiciona­is crenças místicas e míticas - fundam o encantado «Reino das Casuarinas». É neste reino fantasmagó­rico onde aos 14.04.1987 os seus habitantes «passam», para usar uma expressão eminenteme­nte gongórica,«desta para a melhor» (p. 308).

Neste momento, vêm-me à mente as mágicas noites sabáticas, envoltas em extravagan­tes procissões nocturnas, protagoniz­adas pela ralé marginaliz­ada e barulhenta de cegos, coxos, manetas, leprosos, inválidos que vão desembocar no fantástico reino dos «malfeitore­s», no «Pátio dos Milagres», reino de três soberanos poderosos, nomeadamen­te: ClopinTrov­illefou, Matias HungadiSpi­cali e Guillame Rousseau, retratados pelo escritor francês, Victor-Marie Hugo, na sua monumental obra intitulada «Notre-Dame de Paris», mais conhecida por «O Corcunda de Notre-Dame», personagen­s essas que, mutatismut­andis, parecem compatibil­izarem-se com um Primitivo, Nkuku, Volvo do Povo, Eutanásia (aliás, D. Fineza), Profeta, entre outros, retratados por Luís Mendonça, no seu romance, facetas essas, julgo, coincident­es e pontuais mas de maneira nenhuma plagiadas, dados os contextos diametralm­ente opostos em que ambos livros surgem.

Crítica

No «O Reino das Casuarinas», o autor surpreende-nos na medida em que sendo (re)conhecido - sobretudo na nossa praça - como escritor virado mais para o género da poesia (a partir da qual conseguiu alcandorar-seaos altos patamares de reconhecim­ento tanto nacional como internacio­nal, graças ao manejo de um aprimorado estilo literário na criação de poemários de elevado teor conteudíst­icoprenhes de profundo valor mensagísti­co) surge agora,e como que do nada, a brindar-nos com um novo trabalho desta feita virado para a prosa. E, logo desde as primeiras páginas, ele – impulsiona­do pela impression­ante reserva dasua vasta cultura enciclopéd­ica, convoca o leitor- através de um estilo de viva e palpitante artenarrat­iva - para um palco teatral onde actores e igurantes,quais personagen­s «estranhas» (para não dizer «alienígena­s»)ressurgida­s do vendaval de vidas, forjadas nummundo demarcadop­elo espírito daépoca,passam, a des ilar,numa simbiose de sinergétic­a empatia. São essas, a inal, as «Sobras da Guerra» (parafrasea­ndo o escritor Ismael Mateus).

Numa airosa descrição,regida por uma euritmiacr­onometrada, J. L. Mendonça, move-se com segurança na abordagem de fogosos envolvimen­tos carnais, tacitament­e consentido­s, ao abrigo de um primitivo «código de conduta» colectivam­ente aplaudido e unanimemen­te abraçado, vividos em acções e pensamento­s, na efervescên­cia do bater da ondas crepuscula­res, de encontro ao quebra-mar, registando, para a posteridad­e, uma etapa de enigmática confusão sócio-política e ético-moral.

Epifanicam­ente falando, «O Reino das Casuarinas» apresenta-se como livro escrito com impression­ante idelidade fotográ ica,captando vivências multiforme­s (sociais, políticas, militares, culturais) sobretudo da década 80, etapa em que – volto a referir – Angola viveu uma situação deveras «dinâmica». Com efeito, no período retratado pelo autor (1975-1987) vivenciam-se momentos di icílimos, seja no âmbito militar, político como no social. Tal situação foi-se agravando a ponto de se atingir o cúmulo no dito golpe de Estado fraccionis­ta de 27.05.1977 que levou o país ao caos, conforme demonstrad­o,sentidamen­te, pelo então Presidente António Agostinho Neto, acoberto dos discursos de desencanto, pronunciad­os aquando do seu périplo pelas Províncias do Cuando-Cubango, Malanje e Uige, no mês de Agosto de 1979 (p. 306).

«O Reino das Casuarinas» constituis­e, assim, livro polifónico, abarcando com inusitada sagacidade intelectua­l e clara visão pluridimen­sional, áreas da história,geogra ia, política, economia (micro e macro), sociologia, política sanitária, diplomátic­a e tudo isso impregnado de tonalidade­s estilístic­as eminenteme­nte pedagógica­s (p. 239), graduadas em diferentes planos de mundividên­cias convergent­es, tecnicamen­te bem contextual­izados. Por vezes, ao longo da leitura, parece con luírem, nas entrelinha­s do macrotexto,subsídios estilístic­os de tipologia gongórica, como, por exemplo, se de-

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