EVOCAÇÃO DE MANUEL FERREIRA
Leonel Cosme evoca a memória e o trabalho de Manuel Ferreira, introdutor dos estudos de literatura africana nas Universidades portuguesas, nomeadamente de Lisboa.
No seu último grande ensaio saído em 1989, O Discurso no Percurso Africano, editado pela Plátano Editora, Manuel Ferreira faz como que um repositório do que nasuavidae obra marcou o longo percurso de escritoreinvestigador realizado no mundo de língua portuguesa.
Hoje é sabido que Manuel Ferreira foi o introdutor dos estudos de literatura africana nas Universidades portuguesas, nomeadamente de Lisboa. Nascido a 18 de Julho de 1917, em Gândara dos Olivais, freguesia de Marrazes e concelho de Leiria, tem sido ali justamente comemorado o centenário do seu nascimento, não só para honrar um ilustre ilho da terra,mastambém, e sobretudo, a personalidade de renome internacional distinguida em todo o mundo comoprecursora dos estudos da literatura africana de língua portuguesa.
Manuel Ferreira faleceu a 17 de Março de 1992, no último local de residência, em Linda-a-Velha,já com75 anos de idade, grande parte dos quais vividos nas antigas colónias portuguesas, como Cabo Verde, Angola e Goa, até retornarde initivamente a Portugal, em 1954, em função da sua carreira de militar expedicionário, iniciada em Coimbra, aos 16 anos, como voluntário. De família modesta e falecido o pai quando tinha dois anos de idade, o ingresso no Exército foi um recurso de vida, logo que obteve um curso comercial tirado em Leiria,para o que foraprecisocaminhar a pé os quilómetros que distanciavam aquela cidade da sua aldeia.
Em Coimbra, o ambiente contestatário do Exército à política militar de Salazar envolveu- o ao ponto de, em 1938, ser detido e colocado na prisão da PVD do Porto, a seguir transferido para o Aljube e depois julgado por um tribunal militar, que acabou por o absolver. Era um jovem cabo de vinte e poucos anos sem antecedentes criminais…
Mas foi na prisão do Porto que ele despertou verdadeiramente para o conhecimento do mundo, o papel histórico de Portugal nele e da política actual seguida pelo governo de Salazar, graças ao contacto com outros presos de elevadaformação política e cultural, adversários do regime, nomeadamente um que viria a destacar-se, muitos anos depois , em Angola: Jofre Amaral Nogueira, historiador e ensaísta afecto ao Partido Comunista, que mais tarde,naquela colónia, foi professor do ensino técnico, e nas cidades de Luanda, Nova Lisboa e Sá da Bandeira desenvolveu notável activi- dade cívica e cultural, ao mesmo tempo que ia escrevendo nos jornais e publicava livros sobre a colonização de Angola, até ser obrigado a retornar a Portugal, por motivo de doença de familiar. É imaginável queno contactodo jovem Manuel Ferreira na prisão com opositores ao regime fascista e colonialista alguém lhe tivesse lembrado, até por graça, que no mesmo ano do seu nascimento – 1917 – teve lugar a Revolução Russa, as Aparições de Fátima e no Sul de Angola a morte (por suicídio ou alvejado pela tropa inglesa) do insubmisso rei dos cuanhamas, Mandume Ya Ndemufayo…
Em 1941, o cabo Manuel Ferreira foi mobilizado para servir em Cabo Verde, onde permaneceu até 1947, fez o curso liceal, casou com a caboverdiana Orlanda Amarilis, que com ele se fez escritora, nasceu o primeiro ilho e escreveu o primeiro livrode temática caboverdiana: ”Morna”. EmCabo Verde, entãoassolado por anos de fome, se poderá dizer que ele renasceu, recon igurado na sensibilidade e na formação ideológica.Como nos conta:
“No fogo da nossa juventude, andamos metidos, noite e dia, por todos os cantos e recantos da cidade do Mindelo, cedo nos demos a amar a música caboverdiana, presos do gosto da sua dança, da sua culinária, do seu folclo- re, do modo de viver e entender o mundo, enriquecemo-nos na visão das coisas e entender o mundo, enriquecemo-nos na visão das coisas e do homem.(…) Aprendendo como o colonialismo trava e sufoca o espírito de iniciativa, a capacidade criadora popular, a todos os níveis; como o colonialismo não estava nada interessado em dar solução aos problemas fundamentais das populações; como a vocação do colonialismo é antropofágica, etc. (…) E, fatalmente, à medida que procurámos aprofundar certos aspectos da problemática caboverdiana, maior necessidade e maior apetência tínhamos para conhecer o que se passava nos outros países africanos, colónias portuguesas. E naturalmente orientámos as nossas preocupações no sentido de estudar o fenómeno literário e cultural de cada uma dessas nações. Quer dizer, da ‘ escola caboverdiana’ fomos catapultados para a ´escola africana´.“
Quando regressa a Portugal, já com família constituída, cumprida a comissão de serviço, já os primeiros escritos – “Grei” e “A Casa dos Motas” – têm a marca do neo-realismoque, ponti icando na moderna literatura portuguesa, ele interiorizara nas ilhas sofredoras do Atlântico. Mas pouco tempo demorou no país natal: já sargento, é colocado em Goa, onde ica até 1954, sem se sentir atraído por uma vivência meio indiana que não o inspirara, mas aproveitando os seis anos de permanência para tirar um curso de Farmácia, e a esposa, de professora primária.
Colocado nas Caldas da Raínha, concluio livro de contos de temática caboverdiana, “Morabeza”, prefaciado por José Cardoso Pires, que é distinguido com o Prémio Fernão Mendes Pinto, da o iciosa Agência Geral do Ultramar. Todavia, a colaboração que vai mantendocomjornais e revistas literárias, a par do relacionamento com personalidades não afectas ao regime, é motivo para ser transferido, em 1958, para Lisboa. Aqui se desdobra a sua actividade jornalística e é dado à estampa o seu primeiro romance de temática caboverdiana, “Hora di Bai”, distinguido pela Academia de Ciências com o Prémio Ricardo Malheiros. Em 1961 é convidado para secretariar a direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores, presidida por Ferreira de Castro, cargo que ele exerce até 1965, quando aquela Sociedade é dissolvida por acção da polícia política em consequência da distinção que confere ao livro “Luuanda”, de Luandino Vieira, então já prisioneiro, com outros nacionalistas angolanos, no campo de concentração do Tarrafal. Também como consequência da acção destruidora da PIDE, em Angola, na mesma altura e por igual distinção da Sociedade Cultural de Angola ao livro de Luandino Vieira, esta fora igualmente dissolvida, e por arrastamento, em Sá da Bandeira, a editora IMBONDEIRO, que publicara Luandino e outros autores independentistas da chamada Geração de 5O.
Do envolvimento de Manuel Ferreira naquele acontecimento, que levou à prisão alguns membros directivos da SPE, resultou que ele fosse destacado, ainda em 1965, já como tenente, para Angola, onde ica dois anos. É outro período de con irmações práticas e teóricas, com a principal colónia de Portugal em guerra declarada. Para ele, sem novidades nem surpresas, dado que há muito vinha seguindo atentamente o movimento independentis-