Jornal Cultura

UM CANTOR BISSEXTO

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Zé do Pau enveredou pelos caminhos da música numa época em que, tal como ainda hoje, ser artista de palco representa­va uma saída do ciclo da escassez material e do anonimato. Era a época do cabelo à Jimmy Hendrix e dos sapatos à Percy Sledge. Uma época em que Angola crescia economicam­ente, com a diversi icação das exportaçõe­s e a implantaçã­o de novas grandes e pequenas indústrias, dez anos depois do eclodir da luta de libertação pela Independên­cia. Para além da fama, cantar outorgava aos exímios cultores que despontava­m – Luís Visconde, Santocas, Teta Landu, Artur Nunes – ou entravam já no palácio da glória popular – Elias dyá Kimuezu, David Zé, Urbano de Castro – um estatuto social destacado e, até, projecção internacio­nal, mesmo por mera exportação do disco, pois as editoras, com o suporta produtivo das fábricas como a FADIANG, no Bié, tinham o olho agudo para o lucro e conheciam bem o mercado europeu, ávido do exotismo e da forte rítmica africana. Zé do Pau, falecido no passado dia 29 de Dezembro de 2017, viveu essa época magnânima, com uma certa aura de glória, fazendo ouvir música Rock e melodias em estilo Pop, no agrupament­o Contacto. Viveu essa época não só a cantar, mas inspirando cantores com a sua viola-solo, quando integrou Os Corvos, em 1970, e quando compôs para o mestre Zé Keno solar, o instrument­al Pôr-do-Sol.

Viveu essa época em grande, quando acompanhou Os Bongos de Benguela, na gravação do seu primeiro disco.

Zé do Pau viveu essa época suspenso da pequena bengala ( daí cognome de Zé do Pau) que o amparou toda a vida na sua deficiênci­a locomotora e trouxe para a nova era da liberdade uma voz vidrada na glote, a sair um tanto ou quanto anasalada e que o colocaria no quadro de honra dos cantores românticos e espirituai­s angolanos. O brinde mais alto é, sem dúvida, Página Rasgada do Livro da Minha Vida, saído na época de ouro da música popular urbana, que se estenderia até ao ano depois do 11 de Novembro de 1975. Canção de alma, canção nostálgica, lamento angustiado, mas também hino de homenagem à mãe de Zé do Pau, oração divinal que os anjos do Céu gravaram nas nuvens.

No período pós- colonial, Zé do Pau, com um timbre de voz meio quebrado pelo sal do Tempo, lançaria ao ar Xiwana, Amor do Pobre, Mabaya e outras reunidas no CD Renascer. Destas canções, destaca- se Mabaya, em quimbundo. É uma canção que nos revela a outra faceta do cantor, capaz de sair do slow dos anos 70, para as raízes da rítmica veloz e esfusiante do som africano.

Pena ter sido um cantor bissexto. Ele, que levou para a tumba um raro talento capaz de despertar os anjos do Céu.

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