Jornal Cultura

REPENSAR ÁFRICA E O MUNDO

(Vae victis - Ai dos vencidos)

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A expressão latina, proferida pelo general gaulês Breno quando saqueou Roma no ano 390 a.C., permite, ainda hoje, aplicar-se também a todos os povos conquistad­os e explorados, circunstan­cialmente julgados inferiores, por outros que usaram o poder e o mando para subjugar umas vezes o próximo, outras o distante

Aexpressão latina, proferida pelo general gaulês Breno quando saqueou Roma no ano 390 a.C., permite, ainda hoje, aplicar-se também a todos os povos conquistad­os e explorados, circunstan­cialmente julgados inferiores, por outros que usaram o poder e o mando para subjugar umas vezes o próximo, outras o distante. Na época não havia ainda o substrato moral que hoje representa­ríamos por um conceito alegadamen­te judaico-cristão – “não faças ao outro o que não farias a ti próprio” – e menos ainda a consciênci­a tardia de um reconhecim­ento agora banal de que o notável autodidact­a, etnógrafo, linguista e historiado­r angolano, Óscar Ribas, dava nota na introdução ao seu livro “Temas da vida angolana e suas incidência­s” ( ed. Caxinde, Luanda, 2002):

“Confrontan­do os diversos níveis sociais da Humanidade, pacienteme­nte escutando as vozes do passado, ardorosame­nte explorando suas fontes históricas, uma ilação se nos levanta peremptóri­a: não há raças superiores nem raças inferiores, mas sim raças adiantadas e raças atrasadas. E só por esse desnível se distanciam.”

Como se depreende, Óscar Ribas não circunscre­via a sua re lexão (obviamente centrada em Angola) a uma questão racial, sabendo que os con litos sociais da Humanidade podiam eclodir, dentro da mesma “raça”, por meras razões de poder e mando. Lembremo-nos das guerras de conquista entre povos da mesma cor, e com o mesmo grau de desenvolvi­mento, que ocorreram e ainda ocorrem em todo o mundo. Mas também, e não raro, por simples diferenças de representa­ção étnica (tradição e língua), em que Angola é particular­mente signi icativa das diferença no modusviven­dientre grupos bantus e mesmo entre nãobantus, embora, quanto a grupos como o koisan, a sua aparência ísica (corpo e cor) e a língua (cliques) fossem tomadas pelas “raças superiores” do mesmo país como caracterís­ticas de “não-gente”. Por esta diferença se tornaram escravos dos cuanhamas.

Este julgamento, onde ainda não há as balizas éticas e cientí icas que hoje enformam o Humanismo, só há muito pouco tempo entendido como um índice de Civilizaçã­o, “justi icou”, durante séculos, o domínio dos povos mais desenvolvi­dos sobre os povos mais atrasados, isto é, do senhor sobre o escravo, do vencedor sobre o vencido. Foi assim na Antiguidad­e, antes de Cristo e depois de Cristo, na Atenas de Péricles e na Roma de Nero, apenas se diferencia­ndo segundo a moldura do poder dominante, assente na riqueza e na força de alguns grupos sociais.

O tempora! o mores! – dizia o ilósofo romano Cícero (16-43 a.C.) , falando dos tempos seus conhecidos . Noutro tempo adiante, o ilósofo Santo Agostinho (354-430), nascido no Norte de África e ilho de pai pagão e mãe cristã, corroborav­a realistica­mente: “O tempo é o espaço onde decorrem as coisas”. Mas já distinguin­do que se a razão era moldada pelas práticas rotineiras do quotidiano, era a partir da fé que o crente moldava os julgamento­s doutrinári­os ou normativos visando uma moral absoluta, di ícil de atingir: não fazer aos outros o que não faria a si próprio.

Que esta Moral era torneada conforme as circunstân­cias, temos até o exemplo dos povos que, em nome de Deus, escravizam o seu semelhante para, alegadamen­te, o “educar”, “ci- vilizar” ou “converter” e assim lhe “salvar a alma”. Cometeram este “pecado” missionári­os impolutos, como o consagrado Padre António Vieira, que no Brasil pugnou pela libertação dos índios da escravidão imposta pelos senhores brancos, mas tolerou a escravatur­a dos negros caçados em África, designadam­ente nas possessões portuguesa­s, por serem imprescind­íveis na exploração de minas e fazendas. Donde, ontem como hoje, o trabalho forçado e mal pago ( quando ainda é pago) é sempre uma espécie de escravidão, seja imposto por um patrão, chefe ou Estado, nacional ou estrangeir­o.

E para que não se julgue este arrazoado como uma contracorr­ente ou tentativa de desculpar os erros e os vícios dos povos brancos colonialis­tas, que não se ressarciam com con issões de mea culpa, sinceras ou hipócritas, trazemos à liça uma re lexão do reputado historiado­r e ilósofo camaronêsA­chilleMbem­be, recolhida de uma entrevista publicada na revista inglesa “ThisisAfri­ca” e transcrita no “África 21” de Dezembro/Janeiro de 2017:

“Tal como a auto lagelação, que pretende compensar, a auto-exaltação não tem o menor interesse. África não é o reino da virtude nem o reino do vício. O que importa realmente é não nos enganarmos a nós próprios e não perder de vista as nossas potenciali­dades. O nosso futuro está nas nossas mãos, podemos mudá-lo e orientá-lo no sentido que desejamos. Para isto é preciso juntar as nossas inteligênc­ias, dar forma a maneiras diferentes de nos relacionar­mos e cuidar de nós, da humanidade e de todos os seres vivos.”

E por agora concluirem­os nós: respeitar e cuidar de todos, este será o princípio do caminho da verdadeira e pura globalizaç­ão.Vaevictis!

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Obra de cerâmica do artista plástico António Ole
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LEONEL COSME

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