Jornal Cultura

JONUEL GONÇALVES “CONTOS NO FOGO CRUZADO A SUL”

- MANUEL S. FONSECA

«Contos no Fogo Cruzado A Sul», de Jonuel Gonçalves é um livro elegante. É elegante porque é um livrinho de cintura ina. Tem uma cinturinha de 12 centímetro­s, por uma altura de perna de 18 centímetro­s, deliciosas medidas que contêm um corpinho de 88 páginas. Ora isso faz, como é bom de ver, um corpinho de livro a que apetece meter a mão e afagar.

Eu não sei se o autor e o editor, a Perfil Criativo Edições, estão de acordo com esta minha opção de género, ao feminizar estes contos de fogo cruzado. Mas eu acho que sim, que este é um livro feminino, e não só pela delicadeza e elegância do objecto, que é portátil e táctil. « Contos no Fogo Cruzado a Sul » não é de um feminino- objecto, é de uma feminilida­de interventi­va, que pode mesmo ser letal. Mas isso é assunto que reservo lá mais para diante.

Vamos então despir, peça a peça, estes seis “Contos” de Jonuel Gonçalves. Antes há uma dedicatóri­a a um rio, o Kunene, que devia ser, como todos os rios, um rio de vida, mas que, sem deixar de ser um rio de vida, foi, por causa das guerras que sabemos, um rio que assistiu a milhares de mortes. Ao rio, aos vivos e aos mortos, Jonuel presta-lhes tributo.

A essa vénia, segue-se um aviso de rodapé e o autor informa-nos de que estes contos são uma espécie de obra em progresso. Foram publicados em Angola e são agora republicad­os, uns com ligeiras modi icações, outros com alterações profundas. Eu li este aviso depois de ter já lido os contos e isso deu-me, como dará a muitos leitores, uma satisfação profunda. É que nestes contos há personagen­s e há histórias, vidas diria, que icam em aberto e que, quem sabe, numa reedição, aparecerão acrescenta­dos, cumprindo a esperança que nalguns se anuncia, ou contrarian­do o fatal desespero que noutros se espelha. Só peço ao Jonuel que não ressuscite dois ou três dos mortos que morrem nestes contos. São mortos matados que o nosso sentido moral diria que foram muito bem matados. Era inevitável matá-los. Deixemo-los icar quietos, que não é bom certos mortos andarem a mexer-se.

Viramos a página e encontramo­s a nota de introdução. A nota de introdução expande a dedicatóri­a ao Kunene. É uma nota na primeira pessoa, quase um poema, lírica evocação dos cactos que na estação das chuvas o rio cobre para, corridas depois as águas, voltar a revelar. Do que se fala nesse quase poema é de um olhar, do olhar dos cactos que contemplam tudo o que os rodeia e olham ixamente para o nosso autor. Podemos sorrir desse olhar, sorriso que, aliás, Jonuel Gonçalves aceita ou pede aos seus leitores, mas esse olhar tão humano dos cactos é o olhar que preside e que baliza este livro.

Os seis contos que se seguem são contos que têm olhos. Têm olhos de cacto e o leitor vai ter de caminhar entre esses olhares acerados. Se caminhar com cuidado, e como promete Jonuel Gonçalves, não se pica. São olhares que revelam cenários carregados de vida, com tudo o que a vida tem, a começar por esse fundo de pobreza, de catástrofe, de rumor de guerra, de rumor de bandidagem, de rumor de sequestro, de rumor da fome.

Pensarão alguns: « Bolas, se é para isso, para um neo-neo-realismo, mesmo tintado a Cruzeiro do Sul, para essa missa já dei. » E eu não podia estar mais de acordo e acabava aqui a minha intervençã­o. Mas o que acontece é que Jonuel, sobre esse cenário constrói narrativas de vida, personagen­s activas que, nos interstíci­os do caos, constroem ironia, prazer e esperança. Sobretudo as mulheres de Jonuel Gonçalves. E não sei se é por decisão de Jonuel Gonçalves, se é por imposição das mulheres a que Jonuel não pode fugir, essas narrativas de ironia, prazer e esperança em dias e cenários de angústia, são sempre narrativas em aberto, a narrativa em aberto que é uma pessoa estar viva.

Mas vamos agora ao concreto dos seis contos. Já vimos que há sempre um cenário de fundo de algum con lito. São cenários de risco por serem cenários de con lito, seja esse con lito uma guerra ou a instabilid­ade social de uma favela, de um bidonville, de um musseque. E depois, será que cada conto conta um conto e vai cada conto à sua vida sem ter nada que ver com a vida dos outros contos?

Li os contos duas vezes, com muito gosto e exaltação, e já a discutir com ca- da uma das personagen­s, e entendo que há duas constantes que ligam os seis.

Em todos os contos nos deparamos com uma situação extrema, quase limite com que as personagen­s são confrontad­as e em todos os contos há uma cena de amor, de sexo – ou melhor de muito bom sexo feito com amor ou que descamba para o amor. Duas constantes, a situação extrema e o amor, portanto.

É este o retrato da vida humana que Jonuel Gonçalves nos dá. A vida é equilibris­ta e circense. Um ser humano tem de saber andar no arame, tem de saber equilibrar-se, não cair nem mesmo com o mais rude golpe, tirar proveito do mais efémero momento em que a humanidade de outro ser humano lhe é oferecida.

No primeiro conto, «Marcação cerrada como na grande área» (grande título), Daniel é despedido e passa fome. É essa a situação extrema - «E agora vou comer o quê?» pergunta-se Daniel. E é Clarisse, a amiga, que vendo-o caído - «Ele pifou!», diz ela – o salva. Dá-lhe de comer e dá-lhe a comer a asa tatuada que ela tem na coxa, e que eu quero imaginar, embora o Jonuel não diga, que é na face interna dessa tão humana e calorosa coxa.

No segundo conto, «Mogadiscio Reggae» (outro belo título, Jonuel!) tudo é extremo. É extrema a relação de P, um homem, com R, uma mulher islâmica casada e em fuga. É tão extrema a situação, que só os conhecemos por uma inicial dos seus nomes. É extremo o cenário de violência onde vivem. E é extrema uma situação de violação a que R escapa, numa a irmação ísica decidida, apontando uma arma à cabeça ilho da puta de dois violadores. E o que os redime, o que redime o homem P e a mulher R, é o amor, esse sexo que fazem no quarto onde se escondem dos vizinhos – «Vizinhança tem olho de lince», avisa-nosJonuel. Neste segundo conto e pela segunda vez, vemos que o sexo nos contos de Jonuel é bom, conseguido, pleno, participad­o e participat­ivo – numa palavra, isicamente feliz. E tem banho. Os banhos dos amantes são longos, chegando mesmo a ameaçar o equilíbrio ecológico do planeta.

O terceiro conto tem um título mais misterioso «Luanda na Rota do Condor». A situação extrema pode parecer-nos mais comezinha, mas está lá. Um veri icador de carga de camiões está sem dinheiro na conta bancária devido a uma greve de bancários ou dos próprios bancos. E tem de se deslocar a outra cidade, vivendo de expediente­s durante alguns dias. Desse herói, que é o narrador do conto, retemos um ponto decisivo: adora cheirar e, é claro, espera sempre cheirar mulher cheirosa. Na sua deambulaçã­o ele

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