Jornal Cultura

MEU PAI É FEITICEIRO

DE ANTÓNIO QUINO

- ANTÓNIO QUINO

Com tristes salários, meu pai fazia feitiço de multiplica­r dinheiro para que não nos faltasse o que comer, o que vestir e o por que sorrir.

As acusações de feitiçaria contra progenitor­es são muito comuns na nossa sociedade. Oportuname­nte oportunist­a, aproveito a ocasião para também acusar o meu pai de feiticeiro. Meu pai é mesmo feiticeiro. Do que me lembro, nunca disse em voz alta e para todo mundo ouvir, mas meu pai é feiticeiro. Não há aqui truques. Feiticeiro e pronto.

Talvez não tão feiticeiro como os do Curoca, do Gulungo Alto ou do Dombe Grande. Corre a fama que estes, com mestria, ainda fazem coisas de magieiros, superando atém mesmo o afamado Neto Magia; o finado.

Não me atrevo a afirmar se o meu pai faz alguns rituais com incensos com aromas, penas de galinha de Kimbundu; se utiliza ingredient­es como unha de morcego, cauda de lagartixa, velas encarnadas e velas pretas, pena de coruja ou orações ao santo dos ngapas, para que uma simpatia seja alvejada.

Também não me atrevo a confirmar se o ocultismo e espiritual­idade do meu pai, que domina a natureza, convocam forças ocultas do universo e outras divindades. Não quero aqui só afirmar à toa. Porque nunca vi. Juro mesmo!

Porém, por culpa desse meu feiticeiro, tenho maus hábitos e ainda estou vivo. Não faz mal lembrar que também ao feiticeiro devo o dom da vida.

Juro de pés juntos que nunca lhe vi a fazer qualquer ritual diabólico. Mas ele, o meu pai, fez feitiço para que eu tivesse a saúde que tenho, a formação que tenho, a nacionalid­ade que tenho e a personalid­ade que tenho. Até a cara que tenho, por ter introduzid­o em mim traços do seu ADN.

Agora, esse feiticeiro que é o meu pai mexeu em mixórdias que desconheço, porque só assim se justifica que eu não tenha caído em caminhos desviantes ou rotas obscuras, como vi muitos outros filhos dos pais deles caírem; não acabei mau cidadão ou indivíduo extremado que só quer satisfazer o seu ego.

Com tristes salários, meu pai fazia feitiço de multiplica­r dinheiro para que não nos faltasse o que comer, o que vestir e o por que sorrir.

Se ele tinha algum poder oculto, não sei. Mas não me lembro se alguma vez meu pai deixou de ter dinheiro para atender os desejos mínimos de casa: comer, vestir, dormir, estudar, jogar a bola, tratar feridas da carne e brincar.

Tão forte é o meu feiticeiro que, na comunhão com a sua esposa, assim já a minha mãe, a pemba da harmonia no lar vivia em nossa casa.

Acho que ele não sabia fazer feitiço para disfarçar as dificuldad­es e as carências dele. Nem tinha adereços para afastar a dor do insucesso, do fracasso, da desilusão. Seu rosto não poucas vezes deixava transparec­er isso. Até mesmo quando algum de nós adoecesse, via a impotência do feitiço dele, porque o olhar dele acambaiava-se e o silêncio da preocupaçã­o dele barulhava o sossego de todos. E certamente não era com mixórdias que nos curávamos, porque ele tinha o feitiço de ao hospital nos levar. O feitiço do amor incondicio­nal não lhe largava.

Os feiticeiro­s também sofrem. Eu via o meu pai a sofrer por nós.

Os feiticeiro­s também sorriem. Eu via o meu pai a sorrir por nós.

Ouvi muitas vezes o meu pai, feiticeiro, a falar de salário atrasado. Ouvi muitas vezes o meu pai, feiticeiro, a falar de salário insigni icante. Nem sei se alguma vez isso foi relevante para mim, porque eu não deixei de comer, de dormir ou de sorrir por isso.

Há um feitiço igual ao de muitos outros pais, que permitia termos uma educação cristã, que visava respeitar o próximo, ser amigo dos amigos e olhar o pai do outro como nosso pai; a mãe do vizinho como nossa mãe. Esse feitiço ainda me actua.

Está a ver o meu pai, confesso que nunca lhe vi a voar em vassoura, porque esse utensílio de limpeza relacionad­o com os feiticeiro­s, lá em casa era usado em nós quando o fazíamos por merecer. Outras vezes era mesmo para varrer o lixo lá de casa durante o dia. Mas à noite mesmo, o lixo era varrido e encostado num canto. Não poderia ser removido por culpa de algum outro feiticeiro. É que o feiticeiro, meu pai, nos impôs o feitiço de fazer trabalho doméstico: lavar, cozi- nhar, limpar, engomar e brincar.

Se o meu pai tem habilidade­s místicas? Claro que tem. Não posso negar. Quem tem autoridade na voz, não será uma habilidade mística? Quem tem amor nas repreensõe­s, não será habilidade mística?

Quem faz feitiço para o filho ser gente, não pode dizer que não tem habilidade­s místicas!

Lançava magia muitas vezes. Ele e a mulher dele, minha mãe, outra feiticeira. Galinha preta e galinha branca acabavam mesmo na panela, deixando o aroma transpirar sabores que jamais morrerão nas lembranças. O feitiço do olfacto. Como eles preparavam esse feitiço, hoje não sei explicar. Talvez fosse o feitiço para a blindagem contra mau- olhado ou doenças fatais. Por usar magia provinda dele mesmo, sofreu grandes desgastes físico e mental. Meu pai, o feiticeiro é claro, matou- se de me enfeitiçar. Parece que cada feitiço roubava dele algum suspiro de jovialidad­e. Sintome, por isso, responsáve­l pelo envelhecim­ento dele. Hoje, os seus cabelos brancos de feiticeiro experiment­ado são merecidos. De feitiços bem feitos. Trabalhou muito em feitiços para procurar cumprir o seu papel de pai. E eu agradeço por o ter como o meu feiticeiro favorito. Por culpa dos feitiços do meu pai, fui cozinhado para ser pai um dia. Ganhei o dom da vida e a graça de poder gerar vida. São poucos os feiticeiro­s que nos dão isso. Também hoje descon io que sou feiticeiro. Porque já sou pai. Talvez um dia venha a ter cabelo branco. E espero que me venham a considerar feiticeiro, como o meu pai. Portanto, cada qual cuida bem do feiticeiro dele, pois muitos são os que já não têm pais feiticeiro­s. Enfim. Ainda bem que o meu pai é feiticeiro. E espero continuar a imitar esses feitiços para que os meus enfeitiçad­os filhos sejam o que Angola espera deles: cidadãos úteis!

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