O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI
O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI
O século XV abriu “novos”no mundos a Portugaltugal e Espanha e deu início ao ccolonialismoolonialismo que virviria, do século XVIIVII em diante,dian a ser global. A oraturaa é uma ararmama utilizada pelos popovos ex- colonizados paraa o rresgate e afirmaçãomação de culturculturas e tradições. Em Angola,ngola, o escrescritor Manuel Rui é modelar nessa capacidade de rretransformarmar o ttexto literário.
O século XV abriu “novos” mundos a Portugal e Espanha e deu início ao colonialismo que viria, do século XVII em diante, a ser global. Com o iluminismo, encontram-se as bases da modernidade eurocêntrica que trazia no seu bojo o lado escuro do capitalismo e imperialismo: a África foram os europeus buscar milhões de escravos para realizarem a construção da América e nos dois continentes os epistemicídios culturais trouxeram perdas inomináveis. A oratura é uma arma utilizada, hoje em dia, pelos povos ex-colonizados da América Latina e África, para o resgate e afirmação de culturas e tradições. Em Angola, o escritor Manuel Rui é modelar nessa capacidade de retransformar o texto literário.
1. Contactos de culturas e/ou situações coloniais?
No século XV, Portugal e Espanha iniciam as descobertas/conquistas de novos continentes, dando início à primeira modernidade. Nos novos espaços, encontraram muitos povos e culturas, em diferentes graus de civilização.
África e América logo foram enredados numa teia colonial dirigida por Lisboa e Madrid, as capitais que se assenhorearam dum imenso poder, exercido com muita violência. A Igreja Católica participou activamente nesta colonização administrativa, territorial, mercantil, militar e cultural, na chamada primeira globalização.
Dum lado e do outro do Atlântico a economia da colonização processouse num movimento triangular que, partindo da Península Ibérica, explorou as produções de açúcar e as minas de metais preciosos na América do Sul, Central e Antilhas, com o contributo praticamente exclusivo dos escravos africanos, dado o carácter refractário das civilizações ameríndias a esse género de exploração. Milhões de escravos negros foram transportados, em condições indizíveis de desumanização, para o chamado “Novo Mundo”, epíteto que os europeus atribuíram ao continente “descoberto” por eles, não pelos indígenas.
No confronto de olhares civilizacionais decorrente desta conquista, a visão prevalecente foi a dos colonizadores, no caso, apetrechados com os instrumentos necessários: armas de fogo superiores, embarcações poderosas, uma invejável ciência náutica, o incentivo à cristianização dos não crentes, e, acima de tudo, uma autoconsideração cultural, ilosó ica, teológica e moral superior às epistemologias naturalizadas dos povos africanos e ameríndios. Estes, na sua grande maioria, constituíam-se como povos de culturas ágrafas, em contraste com a escrita em português, castelhano ou latim com que a administração registava os factos político-sociais, históricos, culturais e a Igreja procedia à conversão religiosa e ao ensino. Em resumo, para além do senhorio administrativo-económico e político-militar, foi levada a cabo uma por iada tarefa de domínio (quando não apagamento) das culturas locais que di icilmente eram traduzidas e compreendidas.
O epistemicídio em causa veio a ter uma continuidade ainda mais rasurante das culturas diferentes quando, do século XVII em diante, na Europa central, o pensamento das luzes traz ao de cima a modernidade propriamente dita, o capitalismo e o colonialismo que decretavam a superioridade, não apenas do pensamento ilosó ico, mas da própria raça branca relativamente às outras, como, escreve Castro-Gómez, a propósito de Kant:
La tesis básica de Kant continúa siendo la misma: las cuatro razas no solo corresponden a diferencias entre grupos humanos marcadas por determinaciones externas (clima y geogra ía), sino que también, y sobre todo, corresponden a diferencias en cuanto al carácter moral de los pueblos, es decir, a diferencias internas marcadas por la capacidad que tienen esos grupos o individuos para superar el determinismo de la naturaleza.
(…) En su Physische Geographie, Kant establece claramente que “La humanidad existe en su mayor perfección (Volkommenheit) en la raza blanca. Los hindues amarillos poseen una menos cantidad de talento. Los negros son inferiores y en el fondo se encuentra una parte de los pueblos americanos. (Castro-Gómez, 2005:41)
Segundo tais conceitos, as culturas não eurocêntricas di icilmente se poderiam manter incólumes ao serem confrontadas e aculturadas pelo modernismo e colonialismo dos europeus. A questão do seu (quase) desaparecimento tornou-se um grave problema que criou uma issura epistemológica entre o Norte e o Sul.
Como poderiam, então, esses povos colonizados e sem escrita, tentar resguardar as suas características culturais, as suas visões do mundo e as suas epistemologias, a sua história, de modo a preservar a multiculturalidade?
Os ibéricos colonizadores e, sobretudo os crioulos independentistas, na América primeiro ( século XIX) e África depois ( século XX) embora impusessem a força da língua escrita, abriram, então, um processo de aproximação das duas línguas ibéricas a uma prudente inserção de registos das marcas linguístico- culturais e epistemológicas dos povos colonizados e locais.
Com este método, começou a tornar-se possível responder ao desa io ameaçador duma escrita exclusiva- mente colonizadora, dando lugar à emersão dos localismos, também linguísticos de forma progressiva.
2. Apropriação da escrita pelos povos de oratura 2.1. América Latina
As transculturações intensas no Atlântico Sul, assim poderemos apelidar os fenómenos de hibridações culturais que construíram e desenvolveram
esta história das modernidades, têm levado muitos autores a reflectir. Do lado da América Latina, os trabalhos de Fernando Ortiz, Ángel Rama, Ana Pizarro, Walter Mignolo, Néstor Canclini e muitos outros, são fundacionais. Desde logo, ao definirem a transculturação:
…el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra, porque este no consiste solamente en adquirir una cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana aculturation, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que puede decirse una parcial desculturación, y, además, signi ica la consiguiente creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse neoculturación. (Ortiz, 1978:86):
Temos, pois, que nenhuma cultura se apresenta imune à transculturação, muito menos quando se situam em desníveis epistemológicos importantes e que atravessam espaços e tempos tão diversos.
Devido à situação colonial, as culturas consideradas periféricas encontram-se, supostamente, mais expostas à cedência relativamente às culturas metropolitanas, onde a “superioridade” por estas exercida sobre aquelas nunca deixou de proclamar que a escrita era e é considerada um avanço cultural e tecnológico. Porém, o uruguaio Ángel Rama chama a atenção para a di iculdade que a escrita encerra, e é essa a função da literatura e da história, em captar a realidade total das representações simbólicas, presentes nos novos universos continentais, como refere, relativamente aos povos ameríndios, ágrafos:
El atroz empobrecimiento que implica la escritura, los principios de gramatología con su sistema de signos gráficos despojados de voz y de piel, se testimonia en este salto que ha hecho ingresar a un indio a los sistemas culturales modernos. ( Rama, 2004: 87)
Concentremo-nos, então, na percepção da grande di iculdade da tradução para a escrita daquelas culturas localizadas em extremos opostos de relação político-socio-cultural e exercidas com instrumentos desiguais de poder. O mesmo autor recomenda que se deve manter:
(…) una suerte de idelidad al espíritu que se alcanza mediante la recuperación de las estructuras peculiares del imaginario latinoamericano, revitalizándolas en nuevas circunstancias históricas y no abandonándolas. Porque ellas son el más alto esfuerzo inventivo de los pueblos americanos, el sistema simbólico en el cual se expresa y se reconocen como miembros de una comunidad, de hecho la más alta construcción intelectual y artística de que son capaces los hombres. (Rama, 2004:123)
Ana Pizarro, chilena, que re lecte sobre o que decorreu no âmbito cultural no continente sul- americano, estabelece mesmo uma comparação entre as colonizações portuguesa, espanhola e outras, desde os primordiais encontros ali promovidos até hoje e é de opinião que surgiram várias culturas na América do Sul procedentes de status coloniais diversos que foram, depois, evoluindo e geraram muitas especi icidades culturais relativamente às matrizes ibero-americanas ou outras:
Foi assim, e a partir desta situação, que se deu o aparecimento de nossas duas culturas nos termos que as constituíram – culturas construídas com um status colonial, em uma perspectiva de periferia – fazendo com que sua evolução tenha até hoje a complexidade de relações de convergência e divergência, reconhecimento e estranheza, assim como desenvolvimentos paralelos. Todos eles no espaço hegemónico de culturas metropolitanas que política ou simbolicamente se constituem em pólos de referência para o processo de apropriação criativa: Espanha, Portugal, França, no passado, e, no século XX, os Estados Unidos.
(…) A América ambicionava nomear um espaço que, se tinha algum traço de initório, era o de ser um território de superposições e cruzamentos, de intersecções linguísticas, um espaço em vertiginoso movimento de construção cultural. (Pizarro, 2006:105)
Com o argentino Walter Mignolo, podemos con irmar que estas diferentes modernidades construídas na América Latina se encontram vinculadas, na sua origem, a um padrão de colonialismo ocidental e que, após as independências dos Estados (primeira metade do século XIX), os herdeiros “crioulos” prorrogaram processos sociais, culturais e políticos semelhantes aos dos colonizadores.
Aníbal Quijano (2009), do Equador, nomeia esta mentalidade sul-americana de conservadorismo epistemológico, de “colonialidade de poder” que se relaciona com outras duas colonialidades, a “de saber” e a “de ser”, sendo que, por esse prisma, as independências políticas implementaram procedimentos de “colonialidade” pois mantiveram as hierarquias e as práticas e padrões do poder económico e cultural, sem os alterar relativamente ao tempo colonial. Por isso, Mignolo declara que é preciso “descolonizar” o paradigma duma modernidade que é essencialmente composta por três dimensões complexas:
The rhetoric of modernity telling the triumphal narratives of Western civilization: the logic of coloniality, which is the hidden and darker side of the rhetoric of modernity and constitutive of it; and the grammar of decoloniality, which is the task in the present toward the future. ( Mignolo, 2011:85-86):
O argentino Néstor Canclini, por seu lado, escreve que, na América Lati- na, a modernidade se apresenta de modo desigual e plural, pois que a ideia de tradicional e moderno tem sido construída e interpretada de modos diversos pelos grupos sociais que interferem na construção dos mosaicos culturais. Estes teriam como característica comum, a hibridação cultural, por onde se misturam in luências das metrópoles, das colónias, das hegemonias e das subalternidades, do culto e do popular, do tradicional e do moderno. Assim, ser culto moderno implica saber integrar o tradicional:
Ser culto, e incluso ser culto moderno, implica no tanto vincularse con un repertorio de objetos y mensajes exclusivamente modernos, sino saber incorporar el arte y la literatura de vanguardia, así como los avances tecnológicos, a matrices tradicionales de privilegio social y distinción simbólica. (Canclini, 2001:86)
Para a interpretação das culturas da América Latina é imprescindível ter presente o caráter periférico/colonial daquelas sociedades que, desde o século XVI, ali constroem não uma, mas muitas modernidades híbridas. Ainda, citando Canclini: Pareciera entonces que, a diferencia de las lecturas empecinadas en tomar partido por la cultura tradicional o las vanguardias, habría que entender la sinuosa modernidad latinoamericana repensando los modernismos como intentos de intervenir en el cruce de un orden dominante semioligárquico, una economía capitalista semiindustrializada y movimientos sociales semitransformadores.
(…) cuando la transnacionalización de la economía y de la cultura nos vuelve “contemporáneos de todos los hombres” ( Paz), y sin embargo no elimina las tradiciones nacionales, optar en forma excluyente entre dependencia o nacionalismo, entre modernización o tradicionalidad local, es una simplificación insostenible. (Canclini, 2001:94)
O que icou registado pretende, apenas, relativamente à América Latina, ajudar a demonstrar a complexidade resultante do encontro pluricultural e colonial entre paradigmas epistemológicos “abissais” (Santos, 2009) e, no caso presente, observar o modo como as culturas consideradas tradicionais e sem escrita, souberam contornar essa desvantagem, agindo na sua retransformação, salvaguardando, desse modo, a tradição.
Será que, do outro lado do Atlântico, se passou um fenómeno semelhante?
2.2. África
África apenas despertou para as independências em pleno século XX, com uma história do colonialismo que perdurou mais 150 anos do que a americana e com especi icidades acentuadas. O século XIX e a primeira metade do século XX trouxeram até ao continente o efeito imperialista/colonialista decorrente da Conferência de Berlim (1895). As potências europeias dividiram o território africano a
regra e esquadro, sem o menor respeito por etnias, culturas ou nações, apenas visionando a exploração dos recursos naturais e o controlo violento das populações a quem era praticamente impedida a ascensão social.
Convém não esquecer os três séculos anteriores de esclavagismo que, esvaziando a África de milhões de seres humanos – o brasileiro Alencastro ( 2012) fala, só do século XV ao XIX, em mais de 16 milhões, 10 milhões desembarcados na América e os restantes mortos em viagem, – a relegou para uma paragem intervalar no tempo e no espaço. A modernidade foi, aqui, muito diferida e diferente da americana.
É de importância capital o pensamento do camaronês Achille Mbembe que analisa o tempo colonial, como aquele em que o colonizador conseguiu esvaziar, em parte muito substancial, o discurso negro:
Quer se trate de literatura, de iloso ia, de artes ou de política, o discurso negro foi então dominado por três acontecimentos – a escravatura, a colonização e o apartheid.
São a espécie de prisão na qual, ainda hoje em dia, este discurso se encontra. Uma certa inteligência tentou atribuir a estes acontecimentos signi icados canónicos, dos quais, três, em particular, merecem ser evocados. Em primeiro lugar, como sugerimos nos capítulos precedentes, o da separação de si mesmo. Esta separação implicou uma tal perda de familiaridade consigo, que o sujeito, estranho a si mesmo, foi relegado para uma identidade alienada e quase inerte. (Mbembe, 2014:139)
Esta separação de si mesmo estendeu-se, ainda, para outros domínios, o da expropriação material e o empobrecimento ontológico que conduziram à degradação:
A condição servil não terá unicamente mergulhado o sujeito negro na humilhação, no rebaixamento e num sofrimento inominável. No fundo, passou por uma morte civil caracterizada pela negação da dignidade, pela dispersão e pelo tormento do exílio. (Mbembe, 2014:140)
Como se vê, a ligação transcultural do negro ( dispersão e exílio pela América, sobretudo) é um elemento constitutivo da modernidade e foi através do Atlântico que foi construída, através da escravatura colonial e racista, levando a que, também na América (e no mundo) o fundamental papel cultural do negro afro-latino seja, mais uma vez apagado, como na própria África.
Embora os epistemicídios ameríndio, africano e afro-americano tenham assumido proporções inimagináveis, todavia surgiram nas Caraíbas/Estados Unidos e em África ( im do século XIX e século XX) movimentos negros que tentavam recuperar as ligações com a ancestralidade esquecida, como o “pan-africanismo” e a “negritude” (esta na própria África), gerando um novo encontro do negro americano com os outros, os africanos:
Neste encontro, África desempe- nharia o papel de uma força plástica, quase poético-mítica – uma força que remeterá constantemente para um «antes de tempo» (o do rebaixamento); uma força que, esperemos, será capaz de transformar e assimilar o passado, de curar as mais terríveis feridas, de reparar as perdas, de fazer uma história nova com os acontecimentos antigos e, segundo as palavras de Nietzsche a propósito de outra coisa, «de reconstruir sobre o seu próprio fundo as formas quebradas» (Mbembe, 2014:55)
A segunda identidade do negro, diz Mbembe, nasce desta busca duma participação plena na história duma «humanidade global».
Esta é, portanto, outra vertente da razão negra – aquela em que a escrita procura conjurar o demónio do texto primeiro e a estrutura de submissão que ele carrega; aquela em que essa mesma escrita luta por evocar, salvar, activar e reactualizar a sua experiência originária (a tradição) e reencon- trar a verdade de si, já não fora de si, mas a partir do seu próprio território. (Mbembe, 2014:61)
Com algumas divergências ilosó icas relativamente à remediação entre os diversos pensadores, mas com um acordo conceptual por inteiro sobre os male ícios que a “estrutura colonizadora” (Mudimbe, 2013:18) (eurocentrismo) produziu nas “sociedades, culturas e seres humanos marginais”, escreve este pensador congolês que:
(…) emergiu um sistema dicotómico e com este surgiu um grande número de oposições paradigmáticas: tradicional versus moderno; oral versus escrito e impresso; comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada; economias de subsistência versus economias altamente produtivas.
(…) a desintegração social das sociedades africanas e o crescente proletariado urbano como resultado de uma desestabilização das organizações comuns através de um estabele- cimento incoerente de novas ordens e instituições sociais.
(…) se a nível cultural e religioso, através das escolas, igrejas, imprensa e meios audiovisuais, o projecto colonizador difundiu novas atitudes que eram modelos contraditórios e profundamente complexos em termos de cultura, valores espirituais e no que respeita à sua transmissão, também fragmentou o esquema culturalmente uni icado e religiosamente integrado de grande parte das tradições africanas. (Mudimbe, 2013:18-19)
Muitos mais pensadores africanos tratam destas funestas consequências do epistemicídio colonial.
Em Angola é Manuel Rui o escritor que mais re lete e pratica o tema da inscrição da angolanidade no texto literário, através de uma escrita marcada pela oratura. Expor aqui o seu pensamento sobre o processo, é um contributo para a sua compreensão.
3. A oratura, segundo Manuel Rui
Quase todos os escritores e pensadores angolanos da nova geração inscrevem as marcas das várias culturas bantu na escrita em português e nas outras línguas nacionais. Boaventura Cardoso tece as considerações seguintes:
A dimensão sociológica de factos, protagonismos, dramas, tragédias do dia-a-dia; a filosofia banto do vitalismo, inspirada na força vital, transmitida por um ente supremo sobrenatural, superior aos seres humanos e à natureza, e na transmissão recíproca dessa força entre as pessoas e todas as coisas; a envolvência da linguagem banto do maravilhoso e fantástico em nosso discurso ficcional – constituem, entre outras, as componentes- chave que enformam a identidade da nossa escrita angolanizada. (Cardoso, 2008:18)
Para além dessa visão cosmogónica, chama igualmente a atenção para o processo de escrita angolano, propriamente dito:
Gostaríamos, no entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos ios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de fundo da narrativa afro-banto. (Cardoso, 2008:18).
Manuel Rui, com mais de quarenta obras publicadas, que iniciou a carreira literária em 1967, é, desde o início, um expoente importante desta aplicação das marcas de oralidade.
Em 2008 é autor de um texto paradigmático em que relata o que terá sido o encontro dos navegadores portugueses com as populações do Reino do Congo ( inal do século XV). Desde então, refere, os congoleses e descendentes aplicam os processos que se seguem:
Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de
braços da loresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado, ouvido e visto. (Rui, 2008:27)
A vida corria normal no Reino do Congo. Cumpria-se a harmonia, o texto oral vinha acompanhado de espectáculo, música e dança, do gesto e do rito. Eis quando chegam os marinheiros e trazem outros costumes e cultura, a escrita e armas de fogo, e com isso, pretendem mandar nesse território feliz até então. Relata Rui:
A partir daí, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer di ícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projecto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence. (Rui, 2008:27)
Esses estranhos queriam desprezar e bombardear a identidade africana cuja forma de narrar e contar através da oratura era tão rica? Torna-se necessário expurgar da arma da escrita o que ela contém que, para os congoleses, fosse uma agressão. É preciso ir à luta, para recuperar o texto africano:
Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. A inal assim identi icando-me sempre eu até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho em vez de seres o outro.
O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. A inal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. Se o izer deixo de ser outro, aliás como o outro quer [assimilação colonial]. Então vou preservar o meu texto, engrossá-lo mais ainda de cantos guerreiros. Mas a escrita. A escrita. Finalmente apodero-me dela. (Rui, 2008:27-28)
Manuel Rui marca decididamente a identidade e a cosmicidade de África, no texto escrito, e, seguidamente, ensina as regras de proceder, para que os elementos locais iquem registados, muito embora possam não vir a ser entendidos por terceiros:
Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase que morre. Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido. Não tem som. Não tem dança. Não tem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns de nós podem ouvir. No texto es- crito posso liquidar este código aglutinador. Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodi ique para depois me destruir.
(…) No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu. Da minha identidade. (Rui, 2008:28) Tiro, de outro texto meu, a propósito: Nasce uma literatura enriquecida de outros signi icantes, alterada na morfologia e sintaxe, no ritmo, nos círculos de narrativas onde a natureza e o maravilhoso se misturam para recuperar e reconstruir estórias africanas de vida e pensamento, com tempos e locais de outras dimensões (…) (Gaivão, 2016:31)
Uma literatura profundamente híbrida, onde ganha a palavra do mundo, e que se reconverte em instrumento de a irmação, de combate e vida, porque:
(…) o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser acção de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.
Escrever então é viver. Escrever assim é lutar.
(…) até que um dia «os portos do mundo sejam portos de todo o mundo». (Rui, 2008:28)
Referem alguns pensadores africanos, entre eles o angolano Muanamosi (2011), que o tempo colonial foi um parêntesis na história do continente, sendo agora possível retomar muito do que foi perdido. Fazê-lo com a descolonialidade do pensamento é o trabalho em causa e a literatura africana pós-colonial vem-no praticando.
Na América Latina, o avanço temporal das autonomias relativamente a África, representa igualmente um avanço nos estudos culturais e na produção marcadamente híbrida das literaturas nacionais.
Muitos povos e culturas de três continentes se emaranharam numa história de antagonismos e violências, de centros e periferias, de colonizadores e colonizados, mas de que resultaram ricas transculturações e hibridações.
Nesses muitos territórios fronteiriços e diaspóricos vai-se acelerando o surgimento da “humanidade global”. Ela chegará quando o pensamento dos centros e das periferias se tornar limpo do preconceito histórico, descolonial. Luís Mascarenhas Gaivão: PhD Sociologia: Pós-colonialismos e Cidadania Global. Universidade de Coimbra: Faculdade de Economia/ Centro de Estudos Sociais (lgaivao@sapo.pt) ________________________________ Referências bibliográ icas
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