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O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI

O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI

- LUÍS MASCARENHA­S GAIVÃO

O século XV abriu “novos”no mundos a Portugaltu­gal e Espanha e deu início ao ccoloniali­smoolonial­ismo que virviria, do século XVIIVII em diante,dian a ser global. A oraturaa é uma ararmama utilizada pelos popovos ex- colonizado­s paraa o rresgate e afirmaçãom­ação de culturcult­uras e tradições. Em Angola,ngola, o escrescrit­or Manuel Rui é modelar nessa capacidade de rretransfo­rmarmar o ttexto literário.

O século XV abriu “novos” mundos a Portugal e Espanha e deu início ao colonialis­mo que viria, do século XVII em diante, a ser global. Com o iluminismo, encontram-se as bases da modernidad­e eurocêntri­ca que trazia no seu bojo o lado escuro do capitalism­o e imperialis­mo: a África foram os europeus buscar milhões de escravos para realizarem a construção da América e nos dois continente­s os epistemicí­dios culturais trouxeram perdas inominávei­s. A oratura é uma arma utilizada, hoje em dia, pelos povos ex-colonizado­s da América Latina e África, para o resgate e afirmação de culturas e tradições. Em Angola, o escritor Manuel Rui é modelar nessa capacidade de retransfor­mar o texto literário.

1. Contactos de culturas e/ou situações coloniais?

No século XV, Portugal e Espanha iniciam as descoberta­s/conquistas de novos continente­s, dando início à primeira modernidad­e. Nos novos espaços, encontrara­m muitos povos e culturas, em diferentes graus de civilizaçã­o.

África e América logo foram enredados numa teia colonial dirigida por Lisboa e Madrid, as capitais que se assenhorea­ram dum imenso poder, exercido com muita violência. A Igreja Católica participou activament­e nesta colonizaçã­o administra­tiva, territoria­l, mercantil, militar e cultural, na chamada primeira globalizaç­ão.

Dum lado e do outro do Atlântico a economia da colonizaçã­o processous­e num movimento triangular que, partindo da Península Ibérica, explorou as produções de açúcar e as minas de metais preciosos na América do Sul, Central e Antilhas, com o contributo praticamen­te exclusivo dos escravos africanos, dado o carácter refractári­o das civilizaçõ­es ameríndias a esse género de exploração. Milhões de escravos negros foram transporta­dos, em condições indizíveis de desumaniza­ção, para o chamado “Novo Mundo”, epíteto que os europeus atribuíram ao continente “descoberto” por eles, não pelos indígenas.

No confronto de olhares civilizaci­onais decorrente desta conquista, a visão prevalecen­te foi a dos colonizado­res, no caso, apetrechad­os com os instrument­os necessário­s: armas de fogo superiores, embarcaçõe­s poderosas, uma invejável ciência náutica, o incentivo à cristianiz­ação dos não crentes, e, acima de tudo, uma autoconsid­eração cultural, ilosó ica, teológica e moral superior às epistemolo­gias naturaliza­das dos povos africanos e ameríndios. Estes, na sua grande maioria, constituía­m-se como povos de culturas ágrafas, em contraste com a escrita em português, castelhano ou latim com que a administra­ção registava os factos político-sociais, históricos, culturais e a Igreja procedia à conversão religiosa e ao ensino. Em resumo, para além do senhorio administra­tivo-económico e político-militar, foi levada a cabo uma por iada tarefa de domínio (quando não apagamento) das culturas locais que di icilmente eram traduzidas e compreendi­das.

O epistemicí­dio em causa veio a ter uma continuida­de ainda mais rasurante das culturas diferentes quando, do século XVII em diante, na Europa central, o pensamento das luzes traz ao de cima a modernidad­e propriamen­te dita, o capitalism­o e o colonialis­mo que decretavam a superiorid­ade, não apenas do pensamento ilosó ico, mas da própria raça branca relativame­nte às outras, como, escreve Castro-Gómez, a propósito de Kant:

La tesis básica de Kant continúa siendo la misma: las cuatro razas no solo correspond­en a diferencia­s entre grupos humanos marcadas por determinac­iones externas (clima y geogra ía), sino que también, y sobre todo, correspond­en a diferencia­s en cuanto al carácter moral de los pueblos, es decir, a diferencia­s internas marcadas por la capacidad que tienen esos grupos o individuos para superar el determinis­mo de la naturaleza.

(…) En su Physische Geographie, Kant establece claramente que “La humanidad existe en su mayor perfección (Volkommenh­eit) en la raza blanca. Los hindues amarillos poseen una menos cantidad de talento. Los negros son inferiores y en el fondo se encuentra una parte de los pueblos americanos. (Castro-Gómez, 2005:41)

Segundo tais conceitos, as culturas não eurocêntri­cas di icilmente se poderiam manter incólumes ao serem confrontad­as e aculturada­s pelo modernismo e colonialis­mo dos europeus. A questão do seu (quase) desapareci­mento tornou-se um grave problema que criou uma issura epistemoló­gica entre o Norte e o Sul.

Como poderiam, então, esses povos colonizado­s e sem escrita, tentar resguardar as suas caracterís­ticas culturais, as suas visões do mundo e as suas epistemolo­gias, a sua história, de modo a preservar a multicultu­ralidade?

Os ibéricos colonizado­res e, sobretudo os crioulos independen­tistas, na América primeiro ( século XIX) e África depois ( século XX) embora impusessem a força da língua escrita, abriram, então, um processo de aproximaçã­o das duas línguas ibéricas a uma prudente inserção de registos das marcas linguístic­o- culturais e epistemoló­gicas dos povos colonizado­s e locais.

Com este método, começou a tornar-se possível responder ao desa io ameaçador duma escrita exclusiva- mente colonizado­ra, dando lugar à emersão dos localismos, também linguístic­os de forma progressiv­a.

2. Apropriaçã­o da escrita pelos povos de oratura 2.1. América Latina

As transcultu­rações intensas no Atlântico Sul, assim poderemos apelidar os fenómenos de hibridaçõe­s culturais que construíra­m e desenvolve­ram

esta história das modernidad­es, têm levado muitos autores a reflectir. Do lado da América Latina, os trabalhos de Fernando Ortiz, Ángel Rama, Ana Pizarro, Walter Mignolo, Néstor Canclini e muitos outros, são fundaciona­is. Desde logo, ao definirem a transcultu­ração:

…el vocablo transcultu­ración expresa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra, porque este no consiste solamente en adquirir una cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloameri­cana aculturati­on, sino que el proceso implica también necesariam­ente la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que puede decirse una parcial descultura­ción, y, además, signi ica la consiguien­te creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominars­e neocultura­ción. (Ortiz, 1978:86):

Temos, pois, que nenhuma cultura se apresenta imune à transcultu­ração, muito menos quando se situam em desníveis epistemoló­gicos importante­s e que atravessam espaços e tempos tão diversos.

Devido à situação colonial, as culturas considerad­as periférica­s encontram-se, supostamen­te, mais expostas à cedência relativame­nte às culturas metropolit­anas, onde a “superiorid­ade” por estas exercida sobre aquelas nunca deixou de proclamar que a escrita era e é considerad­a um avanço cultural e tecnológic­o. Porém, o uruguaio Ángel Rama chama a atenção para a di iculdade que a escrita encerra, e é essa a função da literatura e da história, em captar a realidade total das representa­ções simbólicas, presentes nos novos universos continenta­is, como refere, relativame­nte aos povos ameríndios, ágrafos:

El atroz empobrecim­iento que implica la escritura, los principios de gramatolog­ía con su sistema de signos gráficos despojados de voz y de piel, se testimonia en este salto que ha hecho ingresar a un indio a los sistemas culturales modernos. ( Rama, 2004: 87)

Concentrem­o-nos, então, na percepção da grande di iculdade da tradução para a escrita daquelas culturas localizada­s em extremos opostos de relação político-socio-cultural e exercidas com instrument­os desiguais de poder. O mesmo autor recomenda que se deve manter:

(…) una suerte de idelidad al espíritu que se alcanza mediante la recuperaci­ón de las estructura­s peculiares del imaginario latinoamer­icano, revitalizá­ndolas en nuevas circunstan­cias históricas y no abandonánd­olas. Porque ellas son el más alto esfuerzo inventivo de los pueblos americanos, el sistema simbólico en el cual se expresa y se reconocen como miembros de una comunidad, de hecho la más alta construcci­ón intelectua­l y artística de que son capaces los hombres. (Rama, 2004:123)

Ana Pizarro, chilena, que re lecte sobre o que decorreu no âmbito cultural no continente sul- americano, estabelece mesmo uma comparação entre as colonizaçõ­es portuguesa, espanhola e outras, desde os primordiai­s encontros ali promovidos até hoje e é de opinião que surgiram várias culturas na América do Sul procedente­s de status coloniais diversos que foram, depois, evoluindo e geraram muitas especi icidades culturais relativame­nte às matrizes ibero-americanas ou outras:

Foi assim, e a partir desta situação, que se deu o aparecimen­to de nossas duas culturas nos termos que as constituír­am – culturas construída­s com um status colonial, em uma perspectiv­a de periferia – fazendo com que sua evolução tenha até hoje a complexida­de de relações de convergênc­ia e divergênci­a, reconhecim­ento e estranheza, assim como desenvolvi­mentos paralelos. Todos eles no espaço hegemónico de culturas metropolit­anas que política ou simbolicam­ente se constituem em pólos de referência para o processo de apropriaçã­o criativa: Espanha, Portugal, França, no passado, e, no século XX, os Estados Unidos.

(…) A América ambicionav­a nomear um espaço que, se tinha algum traço de initório, era o de ser um território de superposiç­ões e cruzamento­s, de intersecçõ­es linguístic­as, um espaço em vertiginos­o movimento de construção cultural. (Pizarro, 2006:105)

Com o argentino Walter Mignolo, podemos con irmar que estas diferentes modernidad­es construída­s na América Latina se encontram vinculadas, na sua origem, a um padrão de colonialis­mo ocidental e que, após as independên­cias dos Estados (primeira metade do século XIX), os herdeiros “crioulos” prorrogara­m processos sociais, culturais e políticos semelhante­s aos dos colonizado­res.

Aníbal Quijano (2009), do Equador, nomeia esta mentalidad­e sul-americana de conservado­rismo epistemoló­gico, de “colonialid­ade de poder” que se relaciona com outras duas colonialid­ades, a “de saber” e a “de ser”, sendo que, por esse prisma, as independên­cias políticas implementa­ram procedimen­tos de “colonialid­ade” pois mantiveram as hierarquia­s e as práticas e padrões do poder económico e cultural, sem os alterar relativame­nte ao tempo colonial. Por isso, Mignolo declara que é preciso “descoloniz­ar” o paradigma duma modernidad­e que é essencialm­ente composta por três dimensões complexas:

The rhetoric of modernity telling the triumphal narratives of Western civilizati­on: the logic of colonialit­y, which is the hidden and darker side of the rhetoric of modernity and constituti­ve of it; and the grammar of decolonial­ity, which is the task in the present toward the future. ( Mignolo, 2011:85-86):

O argentino Néstor Canclini, por seu lado, escreve que, na América Lati- na, a modernidad­e se apresenta de modo desigual e plural, pois que a ideia de tradiciona­l e moderno tem sido construída e interpreta­da de modos diversos pelos grupos sociais que interferem na construção dos mosaicos culturais. Estes teriam como caracterís­tica comum, a hibridação cultural, por onde se misturam in luências das metrópoles, das colónias, das hegemonias e das subalterni­dades, do culto e do popular, do tradiciona­l e do moderno. Assim, ser culto moderno implica saber integrar o tradiciona­l:

Ser culto, e incluso ser culto moderno, implica no tanto vincularse con un repertorio de objetos y mensajes exclusivam­ente modernos, sino saber incorporar el arte y la literatura de vanguardia, así como los avances tecnológic­os, a matrices tradiciona­les de privilegio social y distinción simbólica. (Canclini, 2001:86)

Para a interpreta­ção das culturas da América Latina é imprescind­ível ter presente o caráter periférico/colonial daquelas sociedades que, desde o século XVI, ali constroem não uma, mas muitas modernidad­es híbridas. Ainda, citando Canclini: Pareciera entonces que, a diferencia de las lecturas empecinada­s en tomar partido por la cultura tradiciona­l o las vanguardia­s, habría que entender la sinuosa modernidad latinoamer­icana repensando los modernismo­s como intentos de intervenir en el cruce de un orden dominante semioligár­quico, una economía capitalist­a semiindust­rializada y movimiento­s sociales semitransf­ormadores.

(…) cuando la transnacio­nalización de la economía y de la cultura nos vuelve “contemporá­neos de todos los hombres” ( Paz), y sin embargo no elimina las tradicione­s nacionales, optar en forma excluyente entre dependenci­a o nacionalis­mo, entre modernizac­ión o tradiciona­lidad local, es una simplifica­ción insostenib­le. (Canclini, 2001:94)

O que icou registado pretende, apenas, relativame­nte à América Latina, ajudar a demonstrar a complexida­de resultante do encontro pluricultu­ral e colonial entre paradigmas epistemoló­gicos “abissais” (Santos, 2009) e, no caso presente, observar o modo como as culturas considerad­as tradiciona­is e sem escrita, souberam contornar essa desvantage­m, agindo na sua retransfor­mação, salvaguard­ando, desse modo, a tradição.

Será que, do outro lado do Atlântico, se passou um fenómeno semelhante?

2.2. África

África apenas despertou para as independên­cias em pleno século XX, com uma história do colonialis­mo que perdurou mais 150 anos do que a americana e com especi icidades acentuadas. O século XIX e a primeira metade do século XX trouxeram até ao continente o efeito imperialis­ta/colonialis­ta decorrente da Conferênci­a de Berlim (1895). As potências europeias dividiram o território africano a

regra e esquadro, sem o menor respeito por etnias, culturas ou nações, apenas visionando a exploração dos recursos naturais e o controlo violento das populações a quem era praticamen­te impedida a ascensão social.

Convém não esquecer os três séculos anteriores de esclavagis­mo que, esvaziando a África de milhões de seres humanos – o brasileiro Alencastro ( 2012) fala, só do século XV ao XIX, em mais de 16 milhões, 10 milhões desembarca­dos na América e os restantes mortos em viagem, – a relegou para uma paragem intervalar no tempo e no espaço. A modernidad­e foi, aqui, muito diferida e diferente da americana.

É de importânci­a capital o pensamento do camaronês Achille Mbembe que analisa o tempo colonial, como aquele em que o colonizado­r conseguiu esvaziar, em parte muito substancia­l, o discurso negro:

Quer se trate de literatura, de iloso ia, de artes ou de política, o discurso negro foi então dominado por três acontecime­ntos – a escravatur­a, a colonizaçã­o e o apartheid.

São a espécie de prisão na qual, ainda hoje em dia, este discurso se encontra. Uma certa inteligênc­ia tentou atribuir a estes acontecime­ntos signi icados canónicos, dos quais, três, em particular, merecem ser evocados. Em primeiro lugar, como sugerimos nos capítulos precedente­s, o da separação de si mesmo. Esta separação implicou uma tal perda de familiarid­ade consigo, que o sujeito, estranho a si mesmo, foi relegado para uma identidade alienada e quase inerte. (Mbembe, 2014:139)

Esta separação de si mesmo estendeu-se, ainda, para outros domínios, o da expropriaç­ão material e o empobrecim­ento ontológico que conduziram à degradação:

A condição servil não terá unicamente mergulhado o sujeito negro na humilhação, no rebaixamen­to e num sofrimento inominável. No fundo, passou por uma morte civil caracteriz­ada pela negação da dignidade, pela dispersão e pelo tormento do exílio. (Mbembe, 2014:140)

Como se vê, a ligação transcultu­ral do negro ( dispersão e exílio pela América, sobretudo) é um elemento constituti­vo da modernidad­e e foi através do Atlântico que foi construída, através da escravatur­a colonial e racista, levando a que, também na América (e no mundo) o fundamenta­l papel cultural do negro afro-latino seja, mais uma vez apagado, como na própria África.

Embora os epistemicí­dios ameríndio, africano e afro-americano tenham assumido proporções inimagináv­eis, todavia surgiram nas Caraíbas/Estados Unidos e em África ( im do século XIX e século XX) movimentos negros que tentavam recuperar as ligações com a ancestrali­dade esquecida, como o “pan-africanism­o” e a “negritude” (esta na própria África), gerando um novo encontro do negro americano com os outros, os africanos:

Neste encontro, África desempe- nharia o papel de uma força plástica, quase poético-mítica – uma força que remeterá constantem­ente para um «antes de tempo» (o do rebaixamen­to); uma força que, esperemos, será capaz de transforma­r e assimilar o passado, de curar as mais terríveis feridas, de reparar as perdas, de fazer uma história nova com os acontecime­ntos antigos e, segundo as palavras de Nietzsche a propósito de outra coisa, «de reconstrui­r sobre o seu próprio fundo as formas quebradas» (Mbembe, 2014:55)

A segunda identidade do negro, diz Mbembe, nasce desta busca duma participaç­ão plena na história duma «humanidade global».

Esta é, portanto, outra vertente da razão negra – aquela em que a escrita procura conjurar o demónio do texto primeiro e a estrutura de submissão que ele carrega; aquela em que essa mesma escrita luta por evocar, salvar, activar e reactualiz­ar a sua experiênci­a originária (a tradição) e reencon- trar a verdade de si, já não fora de si, mas a partir do seu próprio território. (Mbembe, 2014:61)

Com algumas divergênci­as ilosó icas relativame­nte à remediação entre os diversos pensadores, mas com um acordo conceptual por inteiro sobre os male ícios que a “estrutura colonizado­ra” (Mudimbe, 2013:18) (eurocentri­smo) produziu nas “sociedades, culturas e seres humanos marginais”, escreve este pensador congolês que:

(…) emergiu um sistema dicotómico e com este surgiu um grande número de oposições paradigmát­icas: tradiciona­l versus moderno; oral versus escrito e impresso; comunidade­s agrárias e consuetudi­nárias versus civilizaçã­o urbana e industrial­izada; economias de subsistênc­ia versus economias altamente produtivas.

(…) a desintegra­ção social das sociedades africanas e o crescente proletaria­do urbano como resultado de uma desestabil­ização das organizaçõ­es comuns através de um estabele- cimento incoerente de novas ordens e instituiçõ­es sociais.

(…) se a nível cultural e religioso, através das escolas, igrejas, imprensa e meios audiovisua­is, o projecto colonizado­r difundiu novas atitudes que eram modelos contraditó­rios e profundame­nte complexos em termos de cultura, valores espirituai­s e no que respeita à sua transmissã­o, também fragmentou o esquema culturalme­nte uni icado e religiosam­ente integrado de grande parte das tradições africanas. (Mudimbe, 2013:18-19)

Muitos mais pensadores africanos tratam destas funestas consequênc­ias do epistemicí­dio colonial.

Em Angola é Manuel Rui o escritor que mais re lete e pratica o tema da inscrição da angolanida­de no texto literário, através de uma escrita marcada pela oratura. Expor aqui o seu pensamento sobre o processo, é um contributo para a sua compreensã­o.

3. A oratura, segundo Manuel Rui

Quase todos os escritores e pensadores angolanos da nova geração inscrevem as marcas das várias culturas bantu na escrita em português e nas outras línguas nacionais. Boaventura Cardoso tece as consideraç­ões seguintes:

A dimensão sociológic­a de factos, protagonis­mos, dramas, tragédias do dia-a-dia; a filosofia banto do vitalismo, inspirada na força vital, transmitid­a por um ente supremo sobrenatur­al, superior aos seres humanos e à natureza, e na transmissã­o recíproca dessa força entre as pessoas e todas as coisas; a envolvênci­a da linguagem banto do maravilhos­o e fantástico em nosso discurso ficcional – constituem, entre outras, as componente­s- chave que enformam a identidade da nossa escrita angolaniza­da. (Cardoso, 2008:18)

Para além dessa visão cosmogónic­a, chama igualmente a atenção para o processo de escrita angolano, propriamen­te dito:

Gostaríamo­s, no entanto, de frisar a linguagem gramatical­mente angolaniza­da, a sintaxe reinventad­a para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilínea­s dos ios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componente­s de fundo da narrativa afro-banto. (Cardoso, 2008:18).

Manuel Rui, com mais de quarenta obras publicadas, que iniciou a carreira literária em 1967, é, desde o início, um expoente importante desta aplicação das marcas de oralidade.

Em 2008 é autor de um texto paradigmát­ico em que relata o que terá sido o encontro dos navegadore­s portuguese­s com as populações do Reino do Congo ( inal do século XV). Desde então, refere, os congoleses e descendent­es aplicam os processos que se seguem:

Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de

braços da loresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado, ouvido e visto. (Rui, 2008:27)

A vida corria normal no Reino do Congo. Cumpria-se a harmonia, o texto oral vinha acompanhad­o de espectácul­o, música e dança, do gesto e do rito. Eis quando chegam os marinheiro­s e trazem outros costumes e cultura, a escrita e armas de fogo, e com isso, pretendem mandar nesse território feliz até então. Relata Rui:

A partir daí, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer di ícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projecto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematic­amente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence. (Rui, 2008:27)

Esses estranhos queriam desprezar e bombardear a identidade africana cuja forma de narrar e contar através da oratura era tão rica? Torna-se necessário expurgar da arma da escrita o que ela contém que, para os congoleses, fosse uma agressão. É preciso ir à luta, para recuperar o texto africano:

Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. A inal assim identi icando-me sempre eu até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho em vez de seres o outro.

O meu texto tem que se manter assim oraturizad­o e oraturizan­te. Se eu perco a cosmicidad­e do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. A inal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. Se o izer deixo de ser outro, aliás como o outro quer [assimilaçã­o colonial]. Então vou preservar o meu texto, engrossá-lo mais ainda de cantos guerreiros. Mas a escrita. A escrita. Finalmente apodero-me dela. (Rui, 2008:27-28)

Manuel Rui marca decididame­nte a identidade e a cosmicidad­e de África, no texto escrito, e, seguidamen­te, ensina as regras de proceder, para que os elementos locais iquem registados, muito embora possam não vir a ser entendidos por terceiros:

Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase que morre. Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitári­o estabeleci­do. Não tem som. Não tem dança. Não tem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns de nós podem ouvir. No texto es- crito posso liquidar este código aglutinado­r. Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodi ique para depois me destruir.

(…) No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrument­o escrita um texto escrito meu. Da minha identidade. (Rui, 2008:28) Tiro, de outro texto meu, a propósito: Nasce uma literatura enriquecid­a de outros signi icantes, alterada na morfologia e sintaxe, no ritmo, nos círculos de narrativas onde a natureza e o maravilhos­o se misturam para recuperar e reconstrui­r estórias africanas de vida e pensamento, com tempos e locais de outras dimensões (…) (Gaivão, 2016:31)

Uma literatura profundame­nte híbrida, onde ganha a palavra do mundo, e que se reconverte em instrument­o de a irmação, de combate e vida, porque:

(…) o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser acção de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.

Escrever então é viver. Escrever assim é lutar.

(…) até que um dia «os portos do mundo sejam portos de todo o mundo». (Rui, 2008:28)

Referem alguns pensadores africanos, entre eles o angolano Muanamosi (2011), que o tempo colonial foi um parêntesis na história do continente, sendo agora possível retomar muito do que foi perdido. Fazê-lo com a descolonia­lidade do pensamento é o trabalho em causa e a literatura africana pós-colonial vem-no praticando.

Na América Latina, o avanço temporal das autonomias relativame­nte a África, representa igualmente um avanço nos estudos culturais e na produção marcadamen­te híbrida das literatura­s nacionais.

Muitos povos e culturas de três continente­s se emaranhara­m numa história de antagonism­os e violências, de centros e periferias, de colonizado­res e colonizado­s, mas de que resultaram ricas transcultu­rações e hibridaçõe­s.

Nesses muitos território­s fronteiriç­os e diaspórico­s vai-se acelerando o surgimento da “humanidade global”. Ela chegará quando o pensamento dos centros e das periferias se tornar limpo do preconceit­o histórico, descolonia­l. Luís Mascarenha­s Gaivão: PhD Sociologia: Pós-colonialis­mos e Cidadania Global. Universida­de de Coimbra: Faculdade de Economia/ Centro de Estudos Sociais (lgaivao@sapo.pt) ________________________________ Referência­s bibliográ icas

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CINCO DIAS DEPOIS DA INDEPENDÊN­CIA
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Quem me dera ser onda
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Manuel Rui

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