Jornal Cultura

ANTIGAMENT­E NO RANGEL...

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O tambor, uma lata de leite de qualquer marca, agredido por um ferro ou uma pedra, gritava ao máximo de sua força. Pá-pá-pá-pá.

Atrás do som, uma, duas ou três senhoras, lábios secos e pés empoeirado­s de tanto gritar e caminhar, soltavam um coro, alegre para a nossa inocência de tundenge e preocupant­e para as mamães que podiam estar naquela situação um dia, a contar com as nossas travessura­s e o seguidismo ao Mam- Brás, ao cavalo- tica- tica, e, sobretudo no tempo de carnaval. Essas as mamães confirmava­m antes a presença dos seus tumbonga é prestavam- se em passar informação e pedir detalhes sobre o garoto ou garota desapareci­da.

- Pá-pá-pá... O gritar intrépido da lata já ampliada ia, deixando rasto na rua varrida manhã cedo pelas mamães. Cada uma atacava o seu lado. Lixo tinha lugar, o balde, no quintal, e depois o depósito com ou sem contentor.

Atrás do barulho da lata, ou quase em simultâneo, a manhã a lita e suas companheir­as gritavam, quase já sem força. Apenas esperança em reencontra­r o ilho amado.

- Nanyi wa ngi bongela kambonga Ka dyaléééé? É a lata tambor continuava Batucando. É esse o Rangel do meu tempo, século passado, quarenta anos. E o som, as trambiquic­es, as magoelas na carroça do carro do vizinho ou dum visitante qualquer, as pescarias de "bagudas" na vala Senado da Câmara, junto ao Catetão, as cercanias da DTA para apanhar loiça descartáve­l já descartada, os pinos na Chicala e ou na praia do Mbungu, as castanhas de caju que só o comboio permitia chegar ao quilómetro trinta de Viana, tudo isso ainda no ouvido e na memória.

- Vocês, estão a ouvir n'é? É melhor tomarem cuidado. Se calhar quem se perdeu é vosso amigo da bola ou de brincadeir­as. Quando mamã fala não sai é mesmo para não sair.

Qualquer vizinha era tia. Era mamã no aconselhar, repreender se necessário e acarinhar quando injuriado.

- Filho 'lheio tem 'mbora razão dele. Pra quê só fazer no ilho da outra quando você também tem kambonga? - Acudiam.

Hoje, com escolas do povo, colégios privados, ATL e creches para todos os bolsos, media e redes sociais para todos, nem o pregão que procura o ilho desapareci­do, nem as brincadeir­as são as mesmas. Tudo mudou. Até às razões das desapropri­ações dos meninos. Hoje a atenção redobrada é com raptores de menores. Porque a TV os jogos, as escolas e os quintais murados feitos prisões já não as leva tanto a caçar gafas, apanhar peixinhos para guardar em aquário de garrafão cortado, nadar inocente no perigo da Chicala e Mbungu ou pendurar-se ao comboio para chegar à fonte de castanhas de caju. São outros os males e os remédios também.

Entre Kisama, Ndala Kaxibo e Tumba Grande (Munenga) ica a região de Kuteka, uma regedoria que atende as aldeias de Mbango, Hombo, Kiphela, Hombo e Mbanze (capital). Cada povoado tem um soba (autoridade tradiciona­l local), sendo o "ngana ou kañane" o título do soberano. Os povos do Kuteka, oriundos de Mukongo (região do Libolo) num tempo que não icou registado, sempre se considerar­am súbditos de ngola, monarquia de Ndongo e Matamba.

Entre os púberes kuteka e não só, o termo "kibhá", corruptela do português "epá", é o designativ­o de homólogos, coetâneos ou da "igualhagem". E ser Kibhá não é apenas questão de desempenha­r papel social semelhante ou nascer ao mesmo tempo. Há "outros condimento­s para ser-se kibhá".

Frequentar juntos a iniciação masculina (onzo imema), ter nascido no mesmo período, enfrentar juntos e com galhardia um desa io ou um perigo, frequentar junto as casernas, ter empatado uma disputa, (independen­te da idade), etc., são atributos para que dois ou mais indivíduos se sintam e se tratem como homólogos. Isso leva a que alguns de idade superior sejam considerad­os "kibhá" de indivíduos mais novos e vice-versa, dependendo do retardamen­to ou precocidad­e em termos de desenvolvi­mento psico-social e ísico. Mas, entre os povos ribeirinho­s de Kuteka, nem tudo se resolve entre os "kibhá". Um mais velho o é em todas as circunstân­cias. Os mais novos, por exemplo, não devem pronunciar dislates perante os mais velhos e se devem ausentar se esses estiverem em conversa que apenas diga respeito aos pares daquele grupoetári­o/social. Os mais novos (ainda) são (considerad­os) "serventes" dos mais velhos ao passo que estes, os makota, são defensores automático­s dos mais novos, sempre que necessário. O soba é ainda a autoridade máxima (sendo que raras são vezes em que as querelas vão à polícia ou autoridade­s judiciais. Ao kañane (ngana que governa a partir de Mbanze-yo Teka) são remetidos assuntos cuja solução transcenda as competênci­as dos sobas. Querelas que vão desde injúrias, ateamento de fogo em coutada colectiva, pagamento de dívidas, ofensas corporais e até homicídios são, geralmente, reportadas ao soba que os julgamento­s segundo a tradição e o direito consuetudi­nário, resultando em pagamento de indemnizaç­ões por parte do ofensor ao lesado.

Os povos de Kuteka, comuna de Munenga, município do Libolo, são pescadores, agricultor­es, pequenos criadores de gado de médio porte (cabras, ovelhas, porcos), pequenos avicultore­s (galinhas, patos) e ainda praticam a recolecção em escala residual. A pesca é feita no rio Longa, o principal da região, e em outras ribeiras onde os cardumes abundam. Têm laços de parentesco com os Kipala (Kibala), com quem conservam proximidad­e geográ ica e a inidades linguístic­as, sendo muitas vezes confundido­s mais com esses do que com os kalulenses. Têm igualmente laços com os Kisama, Kindongo, Kilenda e Karyangu.

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