DA CONDUTA AMOROSA DO HOMEM EM “AMOR SEM PUDOR” DE SOBERANO CANYANGA
onsiderando que toda a produção literária é precedida da experiência previa da leitura, pois a “literatura alimenta-se da literatura”, assim, ao indagar sobre as in luências literárias de Soberano Canyanga em amor Sem Pudor veri icamos, na super ície textual da obra em apreço vestígios, umas vezes implícitos, outras vezes explícitos, de construtos literários quer no contexto angolano e não só, cujo dialogismo textual será demonstrado no decorrer da nossa abordagem.
Em amor Sem Pudor, não é de admirar que as in luências literárias de Canyanga tenham como núcleo a Geração de 80, Geração-independência (cf. FEIJOÓ, 1994:18) ou ‘‘Geração das Incertezas’’, segundo Luís Kandjimbo. Essa Geração produziu textos, alguns dos quais, se podem aplicar, hoje, como referentes no estudo do erotismo literário na Literatura Angolana, sobretudo na poesia, pois olhando para a juventude do autor, temperada na cidade de Luanda entre as dinâmicas de sobrevivência, como explicador de Língua Portuguesa no Bairro Caputo, a Jornalista, bem como pela sua formação em História, serão ingredientes a considerar para que, no contexto angolano, pudesse entrar em contacto com obras de escritores, de cuja pena “brotam versos de intenso deleite” (FEIJOÓK, 1994:11), como António Panguila, Amor Mendigo; Paula Tavares, Ritos de Passagem; Luís Elias Queta, Binómio de Cacimbo; Lopito Feijoó, Entre o Écran e o Esperma, João Melo, Amor, etc.
A obra, que se construiu, em nosso entender, inteligentemente sob o signo do erotismo literário, vai-se desenrolando em torno desta atmosfera, porém, a dado momento, é assaltada por textos cujo construto se desenlaça da atmosfera que a preside, numa espécie de ruptura temática, como se pode veri icar nos poemas “Fuka Yami/Minha Terra” (33); “A Meio do Kasimbu” (p. 34); “Pesadelo” (p.41); “Desa io” (p.42); “Dias que Correm” (p. 43). Olhando para os acabamentos estéticos da maioria desses textos “intrusos” constatase, na nossa visão de leitor, a inexistência de alguma o icina da palavra. como exemplo podemos citar “Dias que Correm” (p.43) Gosto de trabalhar/adapto-me a ambientes quaisquer/climas organizacionais quaisquer... essa prosa comum, efemeramente popular, ou “poesia do desabafo” faz lembrar a obra Nem Tudo é Poesia de David Mestre.
A inal, que amor é esse que o autor se propõe apresentar “sem pudor”? Será o ágape? – uma forma especial de amor? Enfatizado na perspectiva teoló- gica como amor de Deus pelo Homem, esse amor apresentado no Novo Testamento por Cristo, através do qual Deus manifesta-o descendente e transformador da Humanidade, fazendo com que o Homem fosse capaz de amar o seu semelhante, “não por sua beleza ou valores atractivos, mas por si mesmo” (IBOR et al, 1977:6). Se fosse tal amor, porque teria, então sentimento de vergonha que Soberano Canyanga se propõe desmisti icar na sua poética? Ao apresentá-lo “sem pudor”. Talvez, Nygren nos aponte uma saída ao contrapor o ágape ao eros “como dinâmica erótica que impele para o «objecto» amado, desejável” (idem, ibidem) que para os gregos pressupõe a “força natural que impele os animais e o Homem à reprodução”. No plano humano, eros assenta nas raízes psicológicas enquanto o sexo nas raízes biológicas.
Portanto, sexo, eros e ágape são três vértices da conduta amorosa do Homem. Se por um lado existe a “atracção sexual” entre o homem e a mulher, por outro a “atracção erótica” na qual se digladiam simpatias e antipatias, desejos e aversões, vitalidades e fadigas, interesses e desinteresses, é esse complexo dinâmico que leva o homem e a mulher a apaixonarem-se e a desiludirem-se um pelo outro. No inal de tudo, essa tríplice manter-se-á, se ligada ao vértice do reino do ágape, do amor perene.
Depois desse intróito, pode perceber-se que em amor Sem Pudor Canyanga evidencia o vértice eros – sua dimensão psicológica – que remete o Homem “não só a apropriação da beleza do outro corpo, mas a alcançar o mundo das imagens e das ideias”. (idem, ibidem)
Ora vejamos. Para além do sugestivo título amor Sem Pudor, na capa, vê-se uma imagem translúcida, cenogra ia típica: de pé, com a parte superior dos corpos desnudos, pelas feições ísicas, aparenta um par de jovens em beijos que adoptou a posição mais cómoda para os seus objectivos. As mãos do rapaz debaixo dos ombros dela mostram uma excessiva intimidade sexual. Na imagem, chama atenção o cabelo corrido da rapariga, apelando para a matriz estética feminina ocidental em oposição à carapinha ou jimi africano. E aqui, talvez, ocorra questionar que critérios estéticos ou soció-culturais puderão estar na base dessa proposta? Quando o contexto de que imana a obra é angolano/africano, em primeira instância a contar pelos referentes culturais predominantes no texto.
A obra é inaugurada pelo poema “Faixa de Gaja” (p.7), constituído por três estrofes, sendo todas quadras. O título, para os atentos ao que se passa no Médio-Oriente, sugere, convoca, ventila, o espaço ísico conhecido por Faixa de Gaza. A alteração da consoante /z/ de Gaza para /j/ Gaja propõe, sob os auspícios da plurissigni icação, duas ou mais leituras possíveis: a primeira, que chamaremos de “geogra ia feminina” começa por convocar dois elementos da natureza: montanhas e praia, olhe-se que diz montanhas, no mínimo duas e praia, uma, sobre as quais um túnel já sem distância/ ajuda quem por lá relaxa (v. 3, 1.ª estrofe), uma imagética que alude a geogra ia feminina como fonte de prazer, a inal só é relaxante o que é prazeroso. Mais abaixo, e mantendo a tendência metafórica acentua, um bebedouro sedes aguça, (v. 4, 2.ªestrofe) intertecendo diálogo com o trecho de Provérbios, 5:15 (não do ponto de vista da intencionalidade do sujeito poético, mas do barro usado pelos oleiros nos construtos textuais) bebe água da tua cisterna, e das correntes do teu poço, a relação entre as palavras bebedouro/cisterna/poço, sedes/água mos- tra a “faixa da gaja”, alusão a “perenidade” da geogra ia feminina, nas palavras do poeta entre montes e gémeos e terra prometida (v. 2, 3.ª estrofe) em alusão península perene.
A segunda: chamaremos de “o dilema do Médio-Oriente” como referência à situação entre Israel e Palestina. A palavra “secura” como referente do deserto onde morre quem paus arremessa (v. 2, 2.ª estrofe) nesse deserto onde um bebedouro sedes aguça, a disputa pelo ente reclamado por uns e por outros, montes gémeos e terra prometida (v.2, 3.ª estrofe), em alusão à Terra Prometida, segundo o Antigo Testamento (mencionar). Parece-nos, portanto, vingar a primeira leitura, pois, na segunda há como que um esquivar do ‘engajamento’, um diluir da perspectiva Sartreana, como disse Antero de Quental (1988:29) “a poesia deixou de ter missão social. Os raros poetas, que ainda existem, são apenas os restos destroçados duma raça de outras idades e que breve terá desaparecido” e conclui o vate que “a poesia conservar-se-á, mas perdeu o antigo carácter de uma das grandes forças sociais e espirituais da Humanidade, de agente poderoso de civilização”. (idem, p. 30) para Friedrich Schiller a chave para a solução das questões do «mundo político» teria de ser forjada precisamente no «mundo estético» como bem defendeu: “não se trata aqui do que a arte é para mim, e sim de como ela se comporta diante do espírito humano”. (BARBOSA apud Schiller, 2004:19).
Contudo, em nosso entender, a cadência esteticista, neste poema, destoa quando o oleiro da palavra, na circunstância de pôr a mão na argila para dar o toque inal ao artefacto, denuncia com objectividade a urdidura poética, como se pode ler no último verso do poema é entre saia e blusam