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LEMBA, A ORFÃ CONTO DE EMANUEL ALASVIDA

- Emanuel Alasvida (Manuel Pedro Kisingi) nasceu em Luanda, a 19 de Maio de 1994. É estudante de Direito e professor. Membro activo do movimento LEV’ARTE.

Nanga não queria conceber a ideia de que perdera o seu amigo na mata do Ioma, que a escuridão intensa da noite tinha atraiçoado o caminho da fuga, e fora o motivo pelo qual perdera o seu amigo naquele dia, perseguido­s por um animal selvagem, que lhes aparecera no caminho, quando saíam beber água do rio Kinda. Ele, Nanga, conhecia bem os segredos da mata, a direcção para fora dela, os esconderij­os, ainda que houvesse tanta escuridão numa noite sem luar que pudesse ser percalço para alguém não conseguir discernir ou reconhecer o caminho ao fugir. Ele conseguiu escapar do ataque e encontrar o caminho de volta para casa. Mas o seu amigo Vunda foi despedaçad­o por aquele animal selvagem que surgira no meio da mata, porque o mesmo fugira parao outro lado da mata, que não conhecia.Encurralou-se, o animal o apanhou e o matou.

–Pai Nanga, porque estás assim tão triste? Aconteceu alguma coisa? E o pai Vunda? Ele vem atrás de ti?–Perguntou-lheLemba,única ilha do seu amigo Vunda, bastante preocupada.

Depois, vendo as lágrimas que transborda­vam o rosto de Nanga, tinha pressentim­ento de que algo de mal acontecera.Lemba tinha coração mole, era fraca em conter emoções. Já começava a criar lágrimas no seu rosto também.

–Nós vínhamos do campo, depois do rio Kinda, quando de repente fomos atacados por um animal, parecia uma onça.Deprincípi­o, corríamos juntos, mas depois,Vunda, teu pai, optou por outro caminho, e perfurouo outro lado da mata, aí por onde o capim é mais alto, porque pensava esconder-se debaixo do capim alto. Eu continuei na direcção que julgava certa até que esbarrei-me fora da mata.Posto fora, esperei por ele por duas horas, mas ele não aparecia. Gritei por ele, de tal forma que ouvi o eco da minha voz vindo de todos os lugares da mata, mas ele não respondia. Por im, perdi o medo e entrei na mata com uma ramalha que tinha apanhado lá fora da mata, para o tentar resgatar.Mas,infelizmen­te,encontrei-o morto e despedaçad­o no capim.

Quando Lembaouviu isso do Nanga, lançou-se por terra e começou a chorar. Se rebolava no chão e gritava o nome de Vunda, seu pai. Vunda era a única pessoa que Lembatinha na vida. A família de Vundatinha sido toda eliminada, na época em que os opressores reinavam e tinham poder sobre eles.Eles eram escravos durante um bom tempo, e por im foram todos mortos num dia, só Vunda tinha conseguido escapar daquele extermínio e mudado de aldeia. Tinha escapado do plano fatal de extinção da sua tribo.Os tios e os outros parentes maternosnã­o tinham boas relações com seu pai, desde a morte misteriosa da sua mãe, porque acusavam o seu pai de tê-la morto.

Chorava, chorava toda a noite Lembapela morte de seu pai. Juntamente com Nanga choravam pela morte de Vunda durante toda a noite.

Nanga, que estava tão triste e chocado, chorava por ter sido ele quem esteve com Vunda aquando da sua morte pelo animal selvagem, e não ter conseguido fazer nada.

Nanga fez segundo o costume, queimou algumas folhas de bananeira e fez cinza com que lutuaram juntamente a morte de Vunda naquela noite em sua casa.

Conversa de mais-velhos

De manhã cedo, porque Nanga passara a noite na casa do seu amigo Vunda, para consolar a sua ilha e expressar os seus mais sublimes sentimento­s de pesar pelo faleciment­o do pai, falou-lhe dizendo: vou a casa dos teus parentes comunicar acerca da morte do teu pai e lhes pedir que te recebam e tomem conta de ti até que completes dezoito anos e eu venha te buscar depois do matrimónio com o meu ilho Fumbe, para morares connosco segundo a tradição.

Vunda, ele mesmo, é quem tinha escolhido Fumbe para casar com sua ilha Lemba quando ela completass­e dezoito anos, porque queria manter o bom relacionam­ento que tinha com o seu amigo Nanga e sua família. Era uma boa família, de uma boa tribo. Por isso mesmo, queria entregar a mão da sua ilha em casamento ao ilho de seu amigo Nanga.Lemba já sabia disso. Sabia muito bem que lhe tinha sido indicado Fumbe, como seu futuro marido, mas que aguardava a sua emancipaçã­o para ser livre de experiment­ar a vida sexual e matrimonia­l. Lemba aceitou a ideia.

Então, naquela manhã,Nanga partiu para casa dos parentes maternosda Lemba com o objectivo de conseguir que alguém dentre osparentes ou mesmo o chefe da família, o mais velho Soba Temba, se responsabi­lizasse por ela até um certo tempo.

Logo que se aproximava do quintal do Soba Tumba, os meninos que estavam a brincar na areia de bungo em frente ao quintal bordado por algumas hortas de ramas de batata, vendo Nanga se aproximand­o, foram comunicar ao Soba Temba. Finalmente, Nanga chegava a casa do Soba Temba.

Saudaram-se e o soba Temba deu lhe um banco feito de tronco de embondeiro, envolto com borrachas esverdeada­s para se acomodar. Sentaram e começaram a conversar.

–Vieste cá para falar acerca do Vunda, o mesmo homem que tinha morto a minha sobrinha? Perdemos até hoje alguém na família por causa dele.– Perguntou- lhe o Soba Temba.

–Não, não. Não convém lembrar do passado agora.–Repreendeu-oNanga.–Tu sabes que eu fui o melhor amigo dele e me contou tudo.E eu mesmo acompanhei tudo como aconteceu.E nunca acreditei que pudesse ser ele, e nunca irei acreditar por mais respeito e consideraç­ão que tenhapara com o Soba Temba e a tua inteira família.Mas oque me trouxe cá não é isso. É outra coisa.

–O que foi desta vez então? Agora também morreu a Lemba! –Exclamou Temba.

–De maneira nenhuma! Ela cresceu, agora já deve estar com dezassete anos, faltando mais um para a darmos o alembament­o. – … É o Vunda, morreu a dois dias p'ra cá.

– O Vunda morreu?Esse homem malicioso morreu! Exclamou, surpreendi­do com a notícia. Com as mãos na cabeça, Soba Temba não conseguia acreditar. Ficou paralisado por um tempo, sem dizer palavra alguma.

De boca entre aberta, disse, sob o efeito que lhe produzia a notícia: cá se faz, cá se paga.

Respirou fundo Soba Temba. Nanga olhou ignaro e admirado o rosto do Soba Temba, mas não icou muito surpreendi­do com aquela atitude dele e as palavras que izera sair. Continuara­m.

– Como foi que ele morreu e onde foi que isso aconteceu? Quem foi que o matou?

–Saíamos juntos do campo, depois do trabalho, e decidimos passar pelo rio Kinda para beber água, visto que estávamos cansados e com sede. Depois disto, ele insistiu, porque estávamos também cansados, que sentássemo­s para conversar um pouco acerca do futuro da Lemba e do Fumbe, meu ilho. Logo começou a escurecer, daí começamos a voltar. Voltávamos pelo caminho da mata, único caminho que leva de volta à aldeia.No caminho, quando estávamos a passos incertos no meio da mata, de repente apareceuum­a onça.Seguiu-nos. Eu fugi para um lado e o Vunda para o outro lado. A onça seguiu-o aí, apanhou-o e o matou. Foi assim que tudo aconteceu.–Contou o sucedido ao Soba Temba.

Este, tendo ouvido, alegrou- se pela morte de Vunda. Nunca tinham tido boas relações. E pensou logo em apoderar- se dos seus bens.

–Nós já enterramos o corpo, com permissão do soba Hingalá da nossa aldeia. O enterramos mesmo atrás da casa.

— Está bem. A informação está passada. Eu amanhã de manhã estarei lá para buscar a minha ilha.

Nanga de manhã cedo se levantou e foi para a casa de seu falecido amigo Vunda. De longe, Nangaviu uma multidão de pessoas e ouviumuito barulho. Aproximou- se e um pouco apavorado, perguntou a alguém perto. — O que se passa aqui? o que está acontecend­o?

–São os parentes de Lemba. Vieram para uma reunião de família. Respondeu-lhe um mwana iote da aldeia.

Aproximou-se um pouco mais, e lá estava o Soba Temba, dirigindo a querela. Estavam a inal a discutir sobre a partilha dos

bens de Vunda.

–Isso não pode acontecer! Essas coisas são da miúda! Exclamou secretamen­te Nanga. Temia a sanzalice daquela família.

O Soba Temba estava no meio. Todos estavam falando dispersame­nte.E por im o Soba Temba tomou a palavra e, claro,só podia ser ele a concluir:“Vou icar com a casa e os campos de Vunda, porque a mim cabe tomar conta de Lemba até a sua emancipaçã­o e consequent­e ida à casa do marido.”Nanga apreciava a discussão.Não gostounada da decisão. Conhecia muito bem o desejo de Vunda. Tentou pedir a palavra, mas não foi ouvido. Insatisfei­to,foi ter com o soba Hinga da sua aldeia e contou tudo o que Soba Temba, da aldeia vizinha, izera.Infelizmen­te soba Hinga não tinha nada que fazer por aquilo. Apenaslame­ntou a atitude do Soba Temba, suas atrocidade­s, e pediu que Nangamanti­vesse a calma e que aguardasse até a emancipaçã­o da menina para que ela mesma reclamasse a posse dos bens que lhe pertenciam.

O casamento de Lemba

ELemba casou se com um homem rico a mando do Soba Temba. Foi obrigada a casar-se com o rico. Tentou fugir, mas foi apanhada pelos homens do Soba Temba e acabou por aceitar.

Era por causa do amor ao dinheiro que tinha Soba Temba. E por isso izera o contrário àtradição.E Lemba não teve outra escolha. Fumbe já não estava aí. Tinha ido à outra aldeia, a procura de melhores condições para pagar o preço dela.Lemba não tinha quem apudesse defender. Já não sabia mais do paradeiro de Fumbe. Nanga também não sabia, e não queria que ela esperasse muito sem que tivessemal­gum sinal de vida de Fumbe.

Todavia, por ela,Nanga também não podia fazer nada.As regiões eram diferentes e havia costumes diferentes entre si.

Na região de Lemba, o tio podia escolher mulher para a sobrinha na ausência do pai. O tio era considerad­o mais primeiro pai do que qualquer progenitor que houvesse.

Lemba sabia disso apesar de amar muito o pescador Fumbe. Na casa do rico, Lemba era a terceira mulher. Tinha tudo, menos paz e felicidade, visto que era tratada como escrava em casa de Mwatu.Apesar de todo o sofrimento e agruras que padecia vivendo com Mwatu, tinha sonhos de que Fumbe um dia iria regressar e juntos pudessem ser felizes para sempre.

Num dia que não contavam, Fumbe regressou à aldeia. Tinha trazido muitos bens e estava pronto para casar- se com Lemba.

Mánotícia recebe de Nanga, seu pai, que Lemba tinha de se casarcom outro homempor causa de tanta espera e da falta de correspond­ência sua.Já não se falava mais de sua existência. Mensageiro­s haviam sido enviadosà sua procura, mas voltavam sem respostas dele.

Com isso,Nangatinha de convencer Lemba a aceitar a proposta, casando-se com um homem rico, rico lá da casa dos BantuMvuam­a.

Fumbelanço­u ao chão as sacolas que trazia consigo e se pôs a chorar. Nanga lhe contou dos maus-tratos e da ganância por parte do Soba Tembae de todo o infortúnio que havia causado à Lemba, e como lhe havia forçado a casar-se com o rico.

A lito, Fumbesó queria ouvir mesmo da boca da Lemba o começo e o im de todaa história. Fumbe ainda amava muito Lemba.Queria mesmo voltar a ver o seu rosto e saber se estava bem.

–Sou a terceira mulher de Mwatu. Sou escravizad­a, não tenho direitos. –Mas quanto a ti, que agora apareceste, devo confessar que ainda te amo.

A inal, Lembaainda também o amava no fundo do seu coração.Apesar do tempo, não se apagou dentro dela o amor por Fumbe.

Audiência do tribunal

Ambos mantiveram encontrosc­landestino­s na mata e perto do rioKinda, todas as noites do interlúnio.E inalmente Lemba icou grávida. Era problema na aldeia.

Começaram os debates sobre o caso.Lá estiveram todos os sobas,até os de outras aldeias, para apreciar o caso e achar o culpado.Com certeza também o soba Hinga, da aldeia de Nanga, não podia faltar àquele episódio de abuso dos costumes.

Era um con lito de duas regiões. As partes escolheram um juiz comum por meio da arbitragem e este tomou a palavra:

–Lembacomet­euadultéri­o. –Ela deveser expulsa da casa deMwatu e executada juntamente com Fumbe, aos olhos de toda aldeia, tal como ditam as regras.

Adultério, e que ainda resultasse em gravidez, era considerad­o o crime mais grave depois do de homicídio segundo as regras daquelas terras.

Nanga, já idoso, homem propenso à boa modernizaç­ão, perante a decisão do juiz eleito, estava no fundo repudiante e melancólic­o. Sempre foi de poucas palavras.Quase não falava mesmo nada. Mas, desta vez não hesitou, pediu a palavra. – Eu fui amigo íntimo de Vunda. Vundamorre­u com um desejo no seu coração, que era de ver Lemba casada com Fumbe, meu filho. Esse foi o seu desejo mais sublime. Mas esse homem aqui, nunca gostou do Vunda e da sua filha, sempre a molestou. É ganancioso e egoísta.

– À parteas rivalidade­s,Nanga! O caso aqui é de Lemba e Fumbe. Repreendeu-o todo zangado Mwatu. Seguiram-se discussões. E depois:

–Aqui está o manuscrito deixado por Vunda. A inal, Nanga guardava até aí, a carta deixada por Vunda indicando Fumbe como o futuro marido de Lemba, sua única ilha.

Analisou-se a carta e comprovou-se ser verdadeira­mente de Vunda. Verdadeira prova que apresentar­a Nanga naquele tribunal por ocasião.

Soba Temba também reconheceu ser de Vunda aquele manuscrito. Mas a causa ainda não estava ganha. Quer por parte de Nangaquer por parte de Soba Temba. Então só cabia ao juiz julgar o caso.

Na verdade se estavapera­nte duas normas de vivências costumeira­s que já caíam em desuso, porque se confrontav­am com os frutos da modernizaç­ão.

O pai, segundo a norma tradiciona­l, podia indicar ou mesmo obrigar o seu ilho ou ilha a casar-se com quem ele escolhesse, sem liberdade de escolha do próprio ilho ou ilha. E, do mesmo modo, esse direito era atribuído ao tio, chefe da família, na ausência ou morte do pai. Quer Nanga, quer Soba Temba, não estavam errados.

Logo, referiu o juiz: “O pai só tinha decla- rado, mas Fumbe e sua família não tinham pago o preço da mulher. Mas pelo contrário, mais tarde e hoje o rico sugerido pelo Soba Temba à Lemba pagou o preço da mulher…” Era claro e evidente que o casamento com o rico era válido; a maioria presente julgava ser assim.

Quando deixaram Lemba se defender, falou: “De tudo,só sei que o meu pai sempre me falava do bem da família deFumbe,e das suas boas relações desdemuito tempo.” E falou dos maus-tratos de Soba Temba e de como se havia apoderado de sua herança e lhe havia forçado a se casar com o rico por medo de perder a consideraç­ão na aldeia por estar a violar os costumes. Também desarreigo­u a verdade de que o rico a batia muito sem motivo. Falava e chorava amargament­e. Ela sempre foi fraca em conter emoções.

Suas palavras enovelaram a audiência inteira do tribunal.Foram todos moralizado­s com aquelas palavras que se soltavam com lágrimas e imbuídas das insignes memórias do falecido pai.

O juiz entendeu que não havia vontade por parte de Lemba em casar-se com o rico. Que ela tinha sido forçada a casar-se com ele, e que o mesmo por ter dado os bens, a tinha como sua propriedad­e.Declarou inválido o casamento, com fundamento no seguinte: que ninguém podia casar-se a força, quer pela tradição quer por terceiras pessoas, mas qualquer eventual indicação podia necessaria­mente depender da livre e espontânea vontade dessa pessoa, para que não houvesse casos como o da Lemba.

Entendeu o juiz que na verdade a questão do casamento devia obedecer a vontade da própriapes­soa a que diz respeito em relação aoutra e não por força imposta, contrária a sua vontade legítima; e a entrega de bens era uma questão meramente simbólica, que revelasse a honra que o homem desse aos progenitor­es da mulher que pretendess­e casar, mas não poder de domínio sobre estamesma pessoa.

Assim, Fumbe e Lemba foram postos em liberdade. Lemba, por sua espontânea vontade, casou-se com Fumbe e ambos tiveram uma vida de que quase nada lhes faltava.

A Fumbe não foi exigido a devolver o gasto do rico pela mulher, porque este último sabia do casamento forçado que se impunhaaLe­mba pelo Soba Temba. Era simplesmen­te a força da sua riqueza que o conduzia e ensoberbec­ia, pelo que tratava as suas mulheres como sua legítima propriedad­e.

Soba Temba, por consequênc­ia, foi retirado do cargo de responsáve­l da aldeia e obrigado a devolver os bens que por direito pertenciam aLemba.

Fumbe e Lemba tiveram um filho e lhe deram o nome de Vunda, xará do seu pai.

E Nanga, um homem já de idade, acordoua do pesadelo que tinha sobre a morte do seu melhor amigo, Vunda. Com o fôlego quase fora de si, refutou a ideia da morte de Vunda, seu amigo, mas julgou sensata a decisão do juiz da causa sobre a questão do casamento tradiciona­l dos seus dias, e que a modernizaç­ão sempre foi um factor moldador dos costumes e tradições.

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EMANUEL ALASVIDA
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