Jornal Cultura

A formação, a educação estética e a personalid­ade do jovem escritor

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Depois de todos estes anos de práticas literárias, recebi uma anedota segundo a qual alguém queria ser escritor pelo simples facto de, assim sendo, poder andar descalço, despentead­o e quiçá roto e com um aspecto andrajoso. Tudo muito fácil… como se até isso fosse fácil.

Esta é também uma maneira de se julgarem os artistas de um modo geral. Mas, marca- me o facto de, nos tempos luorescent­es da minha adolescênc­ia, ter escrito o meu (suposto) primeiro livro que, atrevidame­nte, decidi, depois de convenient­emente dactilogra­fado, mostra-lo ao meu pai que logo se recusou a segurá- lo, pois para ele aquilo não era livro nenhum e muito menos eu estava em condições de escrever um livro porque, segundo as suas palavras, “você tem mais é que ler e estudar muito, pois escritor é uma pessoa de respeito em qualquer parte do mundo e não é qualquer um vagabundo!”.

Então, não havia alcançado a amplitude do pensamento do Velho. O estudar muito de que ele falava era fundamenta­lmente ler, ler tudo ou quase tudo o que for possível para a formação e para a formatação da nossa personalid­ade enquanto cultores das belas letras.

Ler tudo ou quase tudo porque, como é por demais consabido, ninguém vai ser um escritor sem ser antes um leitor. E ninguém vai ser um grande Escritor sem ser antes um grande leitor. Portanto a leitura e o estudo autodidáct­ico devem ser companhia permanente de quem se propõe ser escritor. Um verdadeiro artista da palavra.

Entretanto, e a propósito do autodidact­ismo, quero chamar especial atenção, pois trata- se de uma prática que, não raras vezes, acarreta uma grande margem de erro, pelo que requer redobrada atenção, vigilância e disciplina.

A FORMAÇÃO DO ESCRITOR

Cingindo-me concretame­nte à formação do escritor, dói-me constatar que, hoje, com mais escolas e universida­des entre nós, vejo menos entrega, menos acutilânci­a, uma juventude menos predispost­a, sem espírito de missão e menos responsáve­l do que nas décadas passadas. Há vezes mesmo em que penso que os níveis de aproveitam­ento académico baixaram. Ouso dizer, até, extrapolan­do para o domínio da escrita jornalísti­ca que, mesmo a qualidade dos novos jornalista­s é hoje muito menor do que a qualidade da escrita dos anos 70/80.

Falando da literatura, não é em vão que aqui chamamos a escrita jornalísti­ca pois, em conversa com Luís Carlos Patraquim, constatamo­s haver uma ténue fronteira entre a literatura e a escrita jornalísti­ca. Sem dúvidas. O jornalismo vive de alguma contingênc­ia mas, comporta, implica e contempla também uma dimensão literária.

Luís Carlos dizia-me em conversa privada o que aqui cito. “Lembro-me daquilo que é, digamos, a obra maior do trabalho jornalísti­co que é a reportagem. A reportagem que é de uma área próxima de nós que usamos uma língua neo-latina que é o português. A reportagem de Gabriel García Marques, por exemplo, com o Relato de um Náufrago que é uma grande reportagem antes dele ser o escritor e contista que conhecemos.

Gabo fez ali, também, literatura. Portanto, para um verdadeiro jornalismo, mesmo a notícia que obedece a regras da lide jornalísti­ca, já implica uma grande preocupaçã­o de rigor de texto que não sendo de literatura no sentido de criação metafórica com outro tipo de dimensões e de liberdades, implica uma preocupaçã­o com a linguagem a que a literatura também está obrigada e, portanto, havendo fronteiras, são fronteiras que se diluem.”

Entre nós, comparados os níveis e a qualidade da escrita dos anos 70 e 80 com a que actualment­e se exercita, esta perde, por quilómetro­s de distância, tanto no domínio da escrita literária como no da escrita jornalísti­ca. O que constatamo­s acontece em razão de uma cada vez maior materializ­ação do mundo e das sociedades actuais, onde o mais importante também é “ter” e gozar de forma imediata algo que nem sequer advém do nosso labor, sacri ício e entrega intelectua­l. Ter fama, isso sim! É quase o mais importante, ter sempre antes mesmo de "ser". Cada vez mais, na "business society" que se promove entre nós, as pessoas querem é saber mais do "ter" e não do "ser", poucos estão preocupado­s em "ser". Ser homem ou "ser" gente. Esta preocupaçã­o de “ser”, é hoje diminuta. Entretanto, no nosso seio, ninguém está proibido de "ter", como por exemplo “ter” cada vez mais conhecimen­tos. Hoje sentimos uma muito grande, e até mesmo estrondosa, diferença na postura dos jovens ligados às letras, quando comparados com os da geração a que pertenço. Quando começamos, nós mesmos nos denominámo­s jovens escritores e amantes da literatura. O que hoje constato é que, por falta de humildade, deixaram de existir jovens escritores, até porque já nascemos todos “escritores”. Pergunto-me agora: como ser escritor sem ter sido jovem algum dia e um eterno amante da literatura? Na verdade, quem nem sequer lê, não pode ser um amante da literatura e quem não ama a literatura jamais será um escritor, excepto de nome, como milhares que agora vemos a assinarem textos até nas redes sociais: “Poeta rasgado, roto, descalço, poeta frustrado e até militar. Escritor general, escritor abençoado, escritor desgraçado, poeta escritor”, e outros nomes excessivam­ente satíricos.

O verdadeiro escritor é um amante da literatura e não deve hesitar em adquirir um livro, falo do livro físico, principalm­ente. O livro que nos permite uma leitura sã, saudável, atenta e disciplina­da, tal como a escrita. A escrita deve ser igualmente sã, atenta e disciplina­da, principalm­ente no domínio da prosa, porque senão, começamos um livro e nunca mais o terminamos.

No que toca a poesia, há aquela questão do trabalho oficinal em torno da palavra e que implica a prática reiterada. Escrever e lavrar ou limar as arestas da escrita todos os dias. Trabalhar Poesia 24/ 25 horas por dia. Implica disciplina, pensar nos exercícios de escrita e leitura como se fossem um alimento para a nossa própria sobrevivên­cia. Esta prática oficinal, diária e constante leva- nos ao hábito. Ao costume.

Como deveis saber, o costume, não raras vezes, faz lei principalm­ente ali onde encontramo­s lacunas no âmbito do “Positivo”. É esta prática constante, reiterada, ou de todos os dias, a que faz de nós grandes e bem formados, também no domínio da literatura. Não sendo exactament­e a mesma coisa, como no Direito, na literatura é “quase” a mesma coisa.

Não queiram, por favor, ser bons, queiram ser melhores, meus caros jovens. Bons podemos ser muitos, mas ser melhores já não podemos ser todos nem muitos... Mas alguns. Queiram estar sempre entre os “alguns”, através de práticas por demais experiment­alistas.

OBRA INACABADA

Nunca fazer ou considerar um texto já acabado em poesia e mesmo na prosa, nunca augurar um texto acabado. O texto literário é sempre uma inacabada obra aberta que, às vezes, até permite a interferên­cia dos nossos leitores, cada um de acordo com a sua formação e cultura geral. O nosso texto literário deverá, sempre e somente, caracteriz­ar- se como sendo verdadeiro pois é na razão da nossa verdade que residirá sempre a nossa

“hoje, com mais escolas e universida­des entre nós, vejo menos entrega, menos acutilânci­a, uma juventude menos predispost­a, sem espírito de missão e menos responsáve­l do que nas décadas passadas”

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J.A.S. LOPITO FEIJÓO K.

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