Jornal Cultura

DO MAR DA KIANDA

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— Oh Zeca, pequeno pescador! Que lindo contemplar o jeito como entrelaças a malha, fazes-me lembrar o grande pescador Damião. (Não o Damião que era calimbeiro, que havia morrido nas Lundas à procura de diamantes). Jacinto, recorrendo aos encantos para dar capim ao boi. O boi era o tempo que Jacinto queria alimentar. Grisalhas não folgavam, ainda sem o sorriso dos peixes cachucho, espada, kimbumbu, madionga e carapau, os mais sagrados da terra. Deitado à cama da praia, de barriga virada para cima, Jacinto só lembrava já do refugo do mar.

Logo, Chivinda abordava Zeca naquela manhã ao pé da ilha. Zeca estava quase a dez pés da restinga, entrelaçan­do a rede para cima e para baixo, e num bate papo que morria o tempo.

Os barcos jaziam hirtos à beira da praia, a distância de nove pés. O sol se abria refulgente aos peitos dos homens de troncos nus,que com os dedos lançavam à malha e a malha lançavam à tralha no imberbe amanhecer. Chivinda aproximou-se: — Ainda não começamos a subir? Perguntou. Deu um tampo no ombro do Zeca. Companheir­o, então! Exclamou Chivinda.

— Chivinda! Chivinda!De que mundo vens tu! Não te bate nos olhos que está tudo estagnado; a areia da praia, os barcos, o tempo e o vozear das forças madrugador­as?!Nós vimos a madrugada chegar, vimos a ilha nascer, nascer das pequenas linhas entrelaçad­as com que apanhávamo­s peixes, mas agora jazem caladas na areia branca. E nem as mabangas dão o resplendor. Montes de baldes lançados no chão, esperando que o mar desça a nível das mabangas. Oh Chivinda! Exclamou Zeca. Franzia o rosto a semelhança do mar ondulado.Deu desfecho ao contento: “Ainda não! Ainda não! Companheir­o cego!” o desrespeit­o soou em voz baixa. Ninguém notou aquele desfecho. Pelo menos da forma como fora.

Chivinda estava arrumado. O silêncio lhe convidou ao chão dapraia. Observou o que estava à volta. Tudo estava mesmo arrumado no despojo — homens, mulheres, crianças até os ânimos e sorrisos dos Musseques. Os ecos voltavam devolutos. O mar estava inconstant­e.

— Então Zeca, companheir­o meu, desde aquela hora? O dia já tem olhos, ganha pés e anda, e nós continuamo­s parados, só a aproveitar­a terra que nos pertence, mas a ilha continua morta.— Já embriagado de desistênci­a, Jacinto enterrava o dia no queixume.

O dia ia sem deixar saudades. As ondas se moviam com muita velocidade:

— Paciência! Jacinto, paciência!Ela é o coração do pobre! Zeca, pequeno pescador, — acalentava o companheir­o.

No entanto, faziam cama na areia da praia e desenhavam um destino decantado no planger. Era Zeca, o pequeno pescador, que tachava o mar:

— Longa jangada lançada que nem rede, o mar zangado não quis saber das boas maneiras, mormente a sede. No treme, treme o mar berrou: — Joca, Joca, partiste as pernas dos meus visitantes! E o Joca, Joca responde: — Esqueceram a bússola do destino, longe jazia o preço de encontrar o im. A morte sempre foi im a preço barato. Desta feita, zangou-se outra vez o mar. — Deixa estar nada! Perdi a minha alma, só tenho que cantar malambas nas madrugadas e sem parir o som das brisas em Luanda. O frio também grita, mas a brisa sente-se quente em vez de frio. Malandro tempo, ninguém governa a dialéctica dos povos.

— Mas quem disse que compramos a lua sem deixar a galinha botar ovos? O engano escorre entre os medos devolutos, mas a certeza do povo é viciada como que é absoluto.

No Lelo, que não era Alameda, a noite caía sem escamas nos olhos do luar. Os pescadores não podiam subir ao mar, porque estava a troca-tintas. Então carregavam seus ócios no píncaro da alma e nos dorsos as rotas redes, e ainda cantavam versos na melancolia da luta mar invencível:

— Redes carregadas, carregadas nos dorsos, húmidos prantos envoltos, nós desistimos. De nós desistimos, mas nunca de sermos pescadores.

À noite cantaremos, nesta noite andaremos, com velas e choros, implorando aos deuses a segurança noutro amanhã quando subirmos ao mar. Daremos dádivas sem parar à deusa mar. Nós desistimos, mas nunca de vencermos o mar!”

Zeca adejou de pés descalços o Lelo todo — aquela noite sem brio, só frio que o Junho retinha nas mãos o ritual à kianda.

Zeca, de pequeno pescador, se tor- nou um grande pescador. Um grande pescador mesmo como o Damião.Daí nunca mais temeu o mar, nem ao subir e nem ao descer. Chivinda e Jacinto obtiveram a mesma agudez de espírito e pernoitara­m nas luzes do guizalhar dos peixes.

E os musseques a iliaram-se de albinos às noites propínguo às palmeiras, entre os garfos, facas e loiças jogados como dádivas à deusa da ilha, por quem sempre tiveram sorrisos devolvidos, mas a morte é sempre um im a preço barato.

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