Jornal Cultura

O MONSTRO ESTÁ EM CENA

Conversar com o insólito, esse deus desconheci­do

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Para a Companhia de Dança Contemporâ­nea de Angola (CDC) colocar “O Monstro Está em Cena” no território do auditório Pepetela, no Centro Camões, em Luanda, alargou-se uma plataforma continenta­l ao palco. Sobre aquela língua de sonhos, a velha arte de dançar que a CDC revive e reinventa a cada temporada, volta a fundir escultura, música e a poesia do Cosmos, para uma teatraliza­ção do silêncio biológico DA IMAGEM. Invoco as kitutas, esses espíritos muito próximos das kiandas, na sua i(mper)manência metafísica e palpável. Que me inspirem a também esculpir com Ana Clara Guerra Marques e Nuno Guimarães, em canto escrito, a melhor forma de conversar com o insólito, esse deus desconheci­do de John Steinbeck.

CENA UM

O monstro está em cena. Cascata de sangue a derramar-se sobre o nosso tempo convertido à impressão nihilista da moral: Eu sou o gajo. O tal cabrão do doutor gajo. A sumidade da filha da putice.

CENA DOIS

Sobe no ar música de câmara, música sacra, uma coisa que vem de longe, de alguma catedral semeada de corpos torturados por uma inquisição infinita. O monstro reparte esmolas. Ou munições espirituai­s?

O monstro abre os braços e consagra a omnipotênc­ia do riso e do desprezo. Depois vai- se embora. Um anjo dança: luz preta exorcizada pelo anátema da condição humana: HOMO HOMINI LUPUS. No túnel rectangula­r de luz conciliató­ria, floresce o diálogo.

CENA TRÊS

Vivo ou morto. Caçadores de cabeças.

CENA QUATRO

Uma sede verde-água enreda o motivo de viver. Se esquece em células de luz, junto ao muro branco (quase) in- transponív­el. “Simão Pedro disse: “Vou à pesca.” “Também nós”, disseram todos. Assim izeram; mas nada apanharam toda a noite.

Ao romper do dia, avistaram um homem de pé na praia, mas não conseguira­m ver quem seria. “Amigos, apanharam algum peixe?”, gritou ele.

“Não”, respondera­m.

Então ele disse: “Lancem a rede do lado direito do barco e apanharão bastante!” Assim foi, e depois nem sequer podiam puxar a rede devido ao peso do peixe, pela sua abundância. (João 21)

A dor de ser homem emite um gesto de desilusão na sua rede de águas verde-cinza. Vasculha, vasculha o pano das águas verde-cinza e só acha o nada eterno.

CENA CINCO

Um órgão de ressonânci­as cósmicas domina o palco de mãos presas nos bolsos. Três passageiro­s obliquopat­as com gestos (e andar) mecanizado pelo contrato (anti)social. As mãos saem dos bolsos e vão tontas, curvadas ao peso de primitivos quissondes peregrinos. O robot moral. A azáfama do sangue nas veias. Esculturas vivas. Linguagem material da dança. Desesperad­as sombras contorcend­o-se contra o muro branco da desilusão.

CENA SEIS

O bailarino sentado lê um mapa. Cinco crianças dentro dos olhos dele decompõem o puzzle do Globo. O bailarino sentado dobra o mapa num acto de navegar, com sereias, a própria solidão. Mas o barco de papel é roubado à luz do dia, para dentro de uma mala de cabina, como quem viaja de avião os sonhos dos inocentes. O que resta? Tombar, desesperar. Convulsiva kazukuta-dança. Último estertor. Corrida contra o muro.

CENA SETE

Sombras a tactear o nada (Sagrada Esperança) abrindo as cortinas de luz sob as quais explode a beleza dos corpos-café. A liberdade manietada sai de cena.

CENA OITO

Vestidos justos. Rosa, verde e ama- relo em perucas sedentas de vã fantasia. O Oriente remasteriz­ado. Bonecas de fantasia móveis. Uma voz como de novela: “uma existência cada vez mais violenta; uma humanidade cada vez menos humana; tecnologia: o monstro está em cena. 1,2,3,4, 1,4,3, 432, eu sou o gajo, o tal cabrão de doutor gajo, a sumidade da ilhadaputi­ce multiplica­da por mil milhares de milhões de biliões, a sumidade da superiorid­ade.”

CENA NOVE

A corda branca de nylon amarra as bonecas como no pós 4 de Fevereiro de 1961. Apesar da mulher. Cipaio preto levando meninas pretas.

CENA DEZ

Vídeo consumista. Luxo nos ossos versus arame farpado. Auschwitz revivido. Caviar e champanhe versus deslocados de guerra e choro de crianças versus napalm. O choro de África durante séculos (Sagrada Esperança).

CENA ONZE

A luz respira sob música sacra e trespassa as quatro sombras. Filantropi­a sonoplásti­ca. A mecânica do tempo na sua ontologia visceral.

CENA DOZE

O primeiro homem nasce de calça branca boca de sino. Como uma nuvem em liberdade, dança e se espraia em acrobacias de peito aberto. Agora é que Michelange­lo Buonaroti devia existir para poder pintar no tecto do mundo essa impressão pura do nossa ressuscita­ção. Sem o dedo omnipotent­e de Deus. Lá no alto da capela Sistina, o céu deixa de rugir. As nuvens eram, a inal, o espanto vivo dos querubins.

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