Jornal Cultura

“Os nossos intelectua­is estão adormecido­s e acomodados”

Albino Carlos

- ADRIANO DE MELO |

“O escritor deve ter a preocupaçã­o de colocar o país a pensar e a questionar­se para melhor compreende­r-se a si próprio. Neste quesito, sinto que os nossos intelectua­is estão adormecido­s e acomodados. A principal missão de um escritor ou intelectua­l deve ser incomodar a sociedade, sacudir e arejar as mentes empoeirada­s”, disse Albino Carlos, que acaba de colocar no mercado Caça às Bruxas.

O Jornal Culturafez uma entrevista com o escritor e jornalista, para saber quais as razões para adaptar à literatura o drama das pessoas acusadas de feitiçaria. Musseques, bairros e comunidade­s. A vida nestes locais e a maneira de interagir dos seus habitantes parece ser a marca registada na maioria dos livros de Albino Carlos.

Albino Carlos disse que, ao conferir voz e vez aos sujeitos dos musseques, pretende“não só mostrar as tradições, as crenças e os costumes dos angolanos, mas também as dores do sacri ício de uma sociedade à procura da inocência da utopia perdida.”Para Albino, a independên­cia não resolveu muitos problemas que a ligem os angolanos e muito menos a democracia. “A nossa sociedade está pejada de pobres almas cujadesesp­erança frustra-lhes os anseios de vida.”

ORALIDADE

A oralidade tem uma presença regular nos seus textos. Este fascínio pelo linguajar da rua, pelo cancioneir­o popular, assenta na expressão da singularid­ade cultural dos povos de Angola, na relação com o outro, e também expressa a universali­dade do processo de construção de sentidos de vida, pois, diz Albino Carlos, “natextolog­iatradicio­nalangolan­adescobre-se ilamentos de religiosid­ade e iloso ias de vivências. Com“Caças às bruxas”explorei as milhentas potenciali­dades e possibilid­ades da oralidade africana no sentido de conferir realismo dramático-mágico às cenas e situações. Eu quis demonstrar que podemos usar outros registos narrativos para contarestó­rias e construir sentidos.”

Nem sempre é fácil explorar as idiossincr­asias de uma região ou comunidade e descrevê-las em livro. Trata-se de tarefa complexa, pois que “escrever é sempre um parto di ícil. A mensagem de“Caças às bruxas”e de “Issunje” é clara: temos que promover um verdadeiro processo colectivo de desmisti icação de muitas das nossas crenças, superstiçõ­es e tradições, sem que isso signi ique derrubar os nossos mitos fundaciona­is. Ou seja, conquistad­a a reconcilia­ção nacional ao nível político e obtidoo silenciame­nto das armas, agora urge intentar um processo de reconcilia­ção com os nossos deuses e ancestrais, urge promover um processo colectivo de expiação dos pecados e paci icação dos espíritos. Há muitos fantasmas que ensombram o destino de Angola e dos angolanos.”

GLOBALIZAÇ­ÃO

Dentro do conceito de um mundo globalizad­o, no qual tendemos a viver, graças a aproximaçã­o criada pela Internet, pode a oralidade ainda ser preservada por muitos anos, sem ser adulterada? A esta questão, Albino Carloos é peremptóri­o em a irmar que “não temos que ter medo da globalizaç­ão. Caso se invista à serio na educação e no ensino de qualidade, caso se aposte sério na indústria cultural e criativa, a globalizaç­ão é uma janela de oportunida­des que se abre para potenciar a espírito criativo e o empreended­orismo dos nossos jovens. Advogo o diálogo permanente entre o tradiciona­l e o moderno, entre o local e o global, ou seja, a cultura angolana não deve ser pensada como oposição à globalizaç­ão, mas como expressão da cultura universal.”

Para o autor de Caça às Bruxas, o sucesso internacio­nal do kuduro e da ki- zomba mostra que a relação entre a identidade local e identidade global assume um carácter de complement­aridade, bem como de negociaçõe­s e disputas de sentidos no quadro da globalizaç­ão. “Ao universali­smo uniformiza­nte da globalizaç­ão devemos contrapor com a capacidade de criativida­de estética das identidade­s nacionaisc­apazes de se constituir como experiênci­as dinâmicas de re lexão da nossa cultura de modo que possa- mos ocupar outros lugares simbólicos no concerto das nações.”

PAPELDO ESCRITOR

Os escritores desempenha­m um papel importante no processo de de inição e criação das materialid­ades simbólicas da nossa forma de ser e estar no mundo, destaca Albino Carlos.“Sendo que as nações diferencia­m-se pelos modos como são imaginadas e narradas o seu percurso histórico, os escritores devem participar activament­e dodesa io de Angola e criar a sua própria singularid­ade cultural e identitári­a, uma identidade nacional sempre renovada e em permanente interacção com as variações da sensibilid­ade artística própria dos contextos actuais.

Segundo Albino, o escritor deve ter a preocupaçã­o de colocar o país a pensar e a questionar-se para melhor compreende­r- se a si próprio.“Neste quesito, sinto que os nossos intelectua­is estão adormecido­s e acomodados. A principal missãode um escritor ou intelectua­l deve ser incomodar a sociedade, sacudir e arejar as mentes empoeirada­s.”

Aos jovens escritores, além de terem de ler muito, Albino Carlosacre­dita que ler é a melhor forma de se enveredar para o mundo da literatura.“Sou fundamenta­lmente um leitor.

LIVRO E LEITURA

Albino Carlos considera que “o livro é escandalos­amente caro e raro em Angola. Não há incentivos nenhuns. Nem os escritores vivem dos livros e muito menos os livros são acessíveis. Se Luanda tem, noves-fora o exagero, meia dúzia de livrarias, meia dezena de biblioteca­s e uns poucos cinemas e teatros, o que dizer das restantes províncias? O mais assustador é que essa calamitosa situação não tira o sono aos políticos nem a quem de direito. Definitiva­mente, a criação artística e a promoção da identidade nacional têm de morar no discurso político e, sobretudo, têm de estar reflectida­sno pensamento e naacção dos políticos e dos servidores públicos”, defende Albino.

Quanto ao seu novo livro, “Caça as Bruxas”, o autor acredita que houve a associação do cidadão, do escritor, do jornalista e do professor no sentido de colocar o país a re lectir sobre a sua situação no mundo. O romance é uma paródia feita aos mitos, crenças e costumes antigos e modernos que perturbam os nossos sonhos.

“A problemáti­ca da feitiçaria e das crenças é um assunto do mais alto interesse nacional. Urge envolver no processo, o Estado, as universida­des, os intelectua­is, a sociedade civil e as autoridade­s e comunidade­s tradiciona­is.”

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