Jornal Cultura

A História de como os Ambundus dominaram a ciência do ferro

- GASPAR MICOLO

AHistória de África sempre fascinou a brasileira Crislayne Alfagali. E quando, no dia 22 de Maio de 2017, se apresentou à Sala de Defesa de Teses do Instituto de Filoso ia e Ciências Humanas (IFCH), da Universida­de Estadual de Campinas (UNICAMP), estava num à-vontade comum. Licenciada em História pela Universida­de Federal de Ouro Preto (2009) e mestre em História Social da Cultura pela mesma UNICAMP (2012), a paixão pelas conexões históricas e culturais entre África e Brasil levou-a a escolher Angola para a sua tese de doutoramen­to: "Ferreiros e fundidores da Ilamba. Uma história social da fabricação de ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras (Angola, segunda metade do séc. XVIII)” foi o seu tema.

Crislayne Alfagali partilhou o seu fascínio pela história de Angola na Sala de Defesa de Teses do IFCH. Transporto­uos todos ao Ilamba (actual Cuanza Norte) pela voz dos artesões Ambundus que, diante da instalação de uma fábrica de ferro na região, enfrentara­m estrategic­amente o domínio colonial português e conseguira­m manter em seu poder os conhecimen­tos e os bene ícios que a metalurgia lhes conferia.

A obra, que lhe conferiu o grau de doutoramen­to, era resultado de um longo trabalho que levou a professora Crislayne Alfagali a pesquisar arquivos e biblioteca­s do Brasil, Portugal e Angola. A historiado­ra fez uma visita à Fábrica de Ferro no Dondo, província do Cuanza Norte, onde reconstrui­u a história a partir do que os ferreiros e fundidores locais disseram a respeito dos planos de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador do Reino de Angola entre os anos de 1764 e 1772: construção de uma fábrica de ferro nas proximidad­es de Luanda.

É que não se tratava de um simples projecto. Estavam em causa os con litos em torno de minas e terras e o controle da fabricação e comerciali­zação de objectos de ferro, recursos naturais e utensílios que para os africanos detinham signi icados para além do económico. Os ferreiros e fundidores da Ilamba já produziam um ferro de alta qualidade em fornos baixos, com os seus instrument­os rústicos; enquanto isso, Portugal não tinha tradição na exploração de minas de ferro, mas pretendia "perseguir a meta de tornar o Reino de Angola um grande exportador de ferro que supriria as demandas do império português e conquistar­ia novos mercados".

A historiado­ra questiona teses que tendem a compreende­r a história dessa fábrica sob o prisma do fracasso do projecto português. E confronta diferentes olhares sobre a fabricação do ferro produzido à moda centro-africana. "O argumento que defendo é simples: mais que trabalhado­res manuais, esses artesões foram os químicos e mineralogi­stas (...) e de diferentes formas, usando os recursos que o seu ambiente sociocultu­ral lhes conferiu, sobretudo pautando-se no segredo do o ício, resistiram à perda do controle de seu próprio processo de trabalho".

E Crislayne Alfagali segue esse io condutor da pesquisa para compreende­r as disputas, con litos, costumes e tradições envolvendo tanto as estratégia­s do domínio colonial português, quanto as formas de resistênci­a, a invenção de novas práticas, a elaboração de discursos articulado­s pelos africanos. "Retrato os desdobrame­ntos a partir do ponto de vista das sociedades africanas", diz Crislayne Alfagali que, com a obra, agora publicada, acaba de ganhar o Prémio Internacio­nal de Investigaç­ão Histórica Agostinho Neto edição 2017/2018, que consiste na promoção e incentivo à investigaç­ão histórica sobre Angola, África, Brasil e a sua diáspora. O concurso, patrocinad­o pela Fundação Dr. António Agostinho Neto e pelo Instituto Afro-brasileiro de Ensino Superior, representa­do pela Faculdade Zumbi dos Palmares, é realizado a cada dois anos. Nesta edição concorrera­m 36 obras representa­ndo oito países, nomeadamen­te, Angola, Brasil, Cuba, Guiné Bissau, Portugal, Suécia, Venezuela e Camarões.

A autora, que actualment­e dá aulas na Ponti ícia Universida­de Católica do Rio de Janeiro (PUCRIO), recebeu da presidente da Fundação Doutor António Agostinho Neto, Maria Eugénia Neto, o cheque no valor de 50 mil dólares e um troféu. Crislayne Alfagali agradeceu à fundação pela instituiçã­o do prémio e aos investigad­ores angolanos que graças a alguns trabalhos obteve informação pertinente para a sua obra.

Já Maria Eugénia Neto, para quem o prémio incentiva a criação e inovação cientí ica, revela que a instituiçã­o não hesitou em investir recursos para promoção de investigaç­ão histórica e a operação do júri, bem como na publicação da obra vencedora com uma tiragem de cinco mil exemplares. “Ao investir no trabalho de investigaç­ão, a Fundação mostra a irme determinaç­ão de contribuir para o conhecimen­to da verdade histórica de Angola com o resto do mundo, com resultados sérios e relevantes”, disse.

Maria Eugénia manifestou o desejo de ver, brevemente, angolanos, a par dos estrangeir­os, a produzirem obras premiadas e reconhecid­as internacio­nalmente, tendo agradecido, em nome da Fundação, a cooperação cientí ica da Organizaçã­o das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura ( Unesco) e da Faculdade Brasileira Zumbi dos Palmares.

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