Jornal Cultura

Ensaios poéticos de Mário Pereira

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A transposiç­ão

(I) Procuro transpôr uma ideia para além de um muro Porém, tão duro é o treino que juro; que não posso Sair deste poço, sem que me esmurre até ao pescoço Pois, de lá sair inteiro só por milagre e muito aturo Dos que enlevam a alma inteira; sem algum remorço Que embargue o labor que adormenta o meu dorso Essa dor que não sendo de amor abolora fruto maduro!

(II) Transponho o in inito do meu horizonte a passo E nele noto aprumado quem há muito me espera Uma esvaziada esperança que há muito se desespera Na esteira de uma esteira onde visse que posso Nos limites do meu parco entender, ter a maneira De urdir uma chalaça ou coisa muito mais brejeira Que a izesse despertar; que a tirasse desse poço!

(III) Transpondo a porta do quarto onde me estendo vejo Iluminando o breu circundant­e, um raio de luz solar Que ameniza a deprimente penumbra que é de atolar Quem fraca mente tem! Por isso eu mesmo antevejo Minha mente atolada, amolada por dura vida sem lar Acolhida em lagar a céu aberto onde o verbo amolar É conjugado com a mestria que se a ila em vil cortejo!

(IV) Transpondo o areal da rua onde moro me enamoro Da beleza de um canto que, se livre, me encantaria Pois cantando em liberdade, em mais beleza cantaria Meu canário em lendário lugar onde também laboro A fugaz ruela que o liberte; que o deserte em alegria Em vôo alado cujo embalo alinda o céu que estaria Alegrando quem nele o visse cantar o que mais adoro!

(V) Procuro transpor a barreira, de qualquer maneira Mas meu pulo não se alonga por perna longa não ter E o mais certo, se calhar, é pôr-me já a mexer Sair do lugar onde me acho e sem fazer asneira Escapulir para onde me possa advir um remexer Um remexer de alma que abale; me faça encher O ânimo abalado por quem é sem eira nem beira!

(VI) Procuro vencer o temor de uma dolorosa angústia No passo em corrida ligeiro que ainda vou dando Aqui e acolá de sacola a tiracolo, jamais saltando Em lugar esquentado, labaredas, sem usar mestria!

(VII) Procuro a mulemba que me viu nascer até crescer E por não achar o rasto que ela deixara para mim Mínguo a alma já sem a chama de outrora e assim Aos olhos de quem me quer ver chorar injo lorescer Ao longo da rua que ainda é minha, um belo jardim Que me faz crer que toda essa vida é mesmo assim Fazedora de angústia que a qualquer um faz padecer!

(VIII) Procuro um véu que me esconda aos olhos do mundo Este mundo que in lama ao sabor da contradiçã­o Um mundo carente de paz causado pela ostentação Que vigora desde que o mundo é mundo; é submundo Incapaz de emergir sem ter de fugir à maldição Ousada mui mal-amada e que acamada é invenção De quem é vil na procura de um coro mui imundo!

(IX) Procuro um achado na rua, na rua da minha triste rua Que, nua, amua quem a vê despir a roupa suja, rasgada Que se reveza a todo o instante sem que seja até lavada Para que, malvada, a vida possa dar o alento que tatua Sem a horripilan­te mancha que, não embelezand­o, nada Nada mais dá senão a vil ostentação de quem é cambada De ideia que não tem mais que pensar se não se enfatua!

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