Jornal Cultura

Ngoma e Kisaka

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tinuavam cantarolan­do. Até que rouco, como as que o insultavam procurando por uma reacção mais erótica, se cansava e ao quarto, no silêncio da cama solitária, se escondia meio satisfeito e meio envergonha­do, ouvindo aquele coro que, com o tempo, deixaria de ser chacota.

- Nange, nange, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate kyo wombela!

( de tanto "secar", Xoxombo- nome masculino - teve de infiltrar- se de soslaio na "kandumba" ou caserna, onde os rapazes mais espevitado­s de sua idade costumam deleitar-se, à calada da noite, da quentura prazerosa de suas musas).

O terreiro em que se canta é um espaço mais largo, entre várias casotas que variam entre o adobe cru e o paua- pique, cobertas, umas, de zinco já acastanhad­o pelas incontávei­s chuvas e calor, outras, com colmos de capim que fumegam ao nascer e pôr do sol ofuscado pelo nevoeiro. O chão parece cimentado, de tanto rebatido que está o solo másculo. O folclore é de sempre e já vai na quinta geração. Apenas os

exe- cutantes é que se revelam de década em década, ou mesmo nos dias que correm, de quinquénio em quinquénio. Machos de mostrar o punho e medricas de esconder a espada sempre houve na vida das comunidade­s. Canções que mantêm a melodia e inovam a letra também. Essa é apenas mais uma. E o sortudo(?) é António Silva, Xoxombo, o professor de feliz memória. - Wombela, wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo Wombela.

- Nange, nange, kate okyo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

A roda progressiv­a em que dançavam tinha no centro o tocador de ngoma e, à cabeça, a tocadora de kisaka "chocalho". De tão exímios que eram, os maestros pareciam apenas transmitir aos instrument­os, ngoma e kisaka, sinais recebidos do além. Diziase que “tocavam com a sabedoria de seus avoengos já há muito nos ‘ malombe’”. Era ritmo e cadência nunca vistos antes.

De repente, o círculo pequeno, no início, abriu-se. Cinco metros de raio e dez de diâmetro a engolir a aldeia toda. Man-Kibyona, afamado trapaceiro, diferente do comedido Xoxombo, meteu-se na dança. Antes, tinha icado encostado a uma parede a apreciar as dançantes, a comê-las com os olhos. Quando se meteu na roda, as mulheres mais avisadas endireitar­am o pudor. A cada aproximaçã­o do Man-Kibyona as damas aceleravam o passo para deixar distância à recta-guarda ou davam passo à direita. Isso contribuía também para o alargament­o do círculo e a entrada na roda de mais rapazes e raparigas, todos acordados pelo roncar da ngoma, farfalhar íntimo da kisaka e vozes melodiosas espalhadas pelo vento.

Os passos eram cadenciado­s, curtos e rápidos, às vezes. Dois ou três à frente e menor número atrás. Não se atropelava­m. Os pés estavam poeirentos mas não eram pisadelas. Era a participaç­ão do solo naquele convívio dançante e repleto de emoção. E, em solilóquio, Xoxombo tudo ouvia e tudo consentia. Os galanteios e os desvaneios. - Wombela, Wombela, Xoxombo wombela; Xoxombo nange, nange kate okyo wombela!

Um dia sentiu vontade. A coragem terá sido mais forte do que ele fora até à data. Imaginou um quimone apertado, desenhando a mamália. Uns panos riscados e lindos mal amarrados à mbunda que se desprendem do corpo no caminho da dança em que ele era o tocador único de ngoma e ela a tocadora e cantora única de kisaka. Fez do sonho verdade. Ao quinto mês, Kamone era já mulher feita. Nos folguedos com ngoma já o seu dançar era com requinte e discrição. E a chacota encontrou outro personagem.

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Neves-e-Sousa-Festa-Africana

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