Jornal Cultura

Angola e a codificaçã­o do Direito Internacio­nal

- FERNANDO OLIVEIRA

Durante séculos, o Direito Internacio­nal teve como principal e quase exclusiva fonte o costume, quer a nível bilateral- o denominado costume particular-, quer a nível multilater­al, embora, neste caso, os Estados envolvidos fossem muito pouco numerosos, circunscri­tos a determinad­as áreas regionais. A densi icação por via convencion­al, através de tratados entre dois ou mais Estados, em todo o caso sempre em número restrito, é um fenómeno relativame­nte recente. Foi preciso esperar até aos inais do século XIX e, acentuadam­ente, por todo o século XX, para que surgisse o Direito Internacio­nal geral, formado pela via convencion­al, isto é, tendo como fontes ou modo de revelação tratados multilater­ais gerais, aspirando a envolverem como partes círculos cada vez mais amplos de Estados, até à universali­dade.

É neste contexto que se insere o movimento da codi icação. Tal como aconteceu com os direitos internos, em que se procedeu à codi icação dos

diferentes ramos do direito, dando lugar ao surgimento dos grandes Códigos na Europa (o Código Civil napoleónic­o, o BGB alemão, o Código Civil italiano, o Código Civil português, dito “de Seabra”, etc.), também a codi icação do Direito Internacio­nal, com início em inais do século XIX (vd. as Convenções de Haia sobre o Direito da Guerra), resultou num consideráv­el desenvolvi­mento do tecido normativo da Comunidade Internacio­nal, abrangendo domínios cada vez mais amplos. Com efeito, a codi icação vem responder à enorme dispersão das normas de Direito Internacio­nal, provenient­e da estrutura descentral­izada da sociedade internacio­nal e do modo igualmente descentral­izado e não hierarquiz­ado da produção jurídica que nela vigora. No Direito Internacio­nal a codi icação traduz-se na recolha, compilação e sistematiz­ação, a propósito de uma determinad­a matéria, dos costumes e dos tratados, quer bilaterais quer gerais, da jurisprudê­ncia internacio­nal e interna, da doutrina dos publicista­s, da prática dos Estados, evidenciad­a quer pelas suas lei internas, quer pelos seus actos jurídicos unilaterai­s e também da prática das Organizaçõ­es Internacio­nais. Mas, tal como nos direitos internos, a codi icação no Direito Internacio­nal não se limita a uma mera transposiç­ão declarativ­a e cristaliza­ção escrita daquelas fontes pré-existentes. Ela reveste-se também de um carácter inovador, promovendo e concretiza­ndo aquilo que a doutrina chama de desenvolvi­mento progressiv­o do Direito Internacio­nal.

Quanto ao resultado do trabalho da codi icação, a modalidade mais frequente, por assim dizer, mais vinculativ­a, é a da via convencion­al, ou seja, adopção de um tratado multilater­al geral, aberto à participaç­ão universal (todos os Estados do mundo, sejam ou não membros das Nações Unidas), a que por prática habitual se dá o nome de Convenção. Mas a codi icação também pode culminar numa Declaração, aprovada pelo órgão plenário da ONU ou de uma outra Organizaçã­o Internacio­nal regional (vd. a referida “De inição de Agressão”, a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” e a “Declaração sobre a outorga da independên­cia aos países e povos coloniais”, a famosa Resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, tomada em 14 de Dezembro de 1960).

Os fazedores e autores da codi icação em Direito Internacio­nal, por assim dizer, “os legislador­es”, são os Estados – os que participam na preparação e elaboração das Convenções e delas se tornam parte ou, no caso particular das Declaraçõe­s, aqueles que participar­am e votaram favoravelm­ente a adopção das mesmas no órgão da Organizaçã­o Internacio­nal.

E é neste campo da autoria que se veri icou uma mudança radical a partir da década de sessenta do século passado. Com efeito, o Direito Internacio­nal anterior, dito “clássico”, era caracteriz­ado por um dominante europeioce­ntrismo: era fundamenta­lmente um direito oligárquic­o, de um “clube” restrito de Estados europeus, não só ao nível da sua elaboração, como da sua aplicação, servindo primordial­mente os interesses hegemónico­s desses mesmos Estados. Vejase, como exemplo paradigmát­ico, o Congresso de Berlim (1884-1885), que reuniu apenas treze potências europeias e os Estados Unidos da América, que procederam à partilha entre si das colónias africanas e de iniram as regras jurídicas que deveriam presidir às futuras ocupações dos território­s africanos ( princípio da efectivida­de e regra da noti icação às outras potências). Esse era “o direito internacio­nal da época”...

Já o Direito Internacio­nal contemporâ­neo – por facilidade poderemos situá-lo no marco temporal a partir da fundação das Nações Unidas, em 1945 – é um direito verdadeira­mente universal, re lexo da moderna democratiz­ação da sociedade internacio­nal: na sua criação, participam, em pé de igualdade, todos os Estados. E, pelo seu conteúdo e na sua aplicação, os Estados são colocados numa posição de total igualdade jurídica. Grandes e pequenos, ricos e pobres: todos, para o Direito Internacio­nal, iguais.

Alcançada a Independên­cia e edi icado institucio­nalmente o novo Estado, Angola também começou a contribuir na elaboração e codi icação do Direito Internacio­nal, designadam­ente participan­do activament­e em comités de especialis­tas encarregad­os dos trabalhos preparatór­ios de Convenções, em Conferênci­as diplomátic­as de codi icação e nos órgãos plenários das Organizaçõ­es Internacio­nais, nomeadamen­te a Organizaçã­o da Unidade Africana e a Organizaçã­o das Nações Unidas.

Já aqui referimos a participaç­ão de Angola, ao nível da OUA e da ONU, nos trabalhos de preparação das citadas Convenções sobre a prevenção e eliminação do mercenaris­mo. E, nesse domínio, é justo salientar o empenhamen­to de Angola e o seu activismo pioneiro.

Poderíamos também lembrar a participaç­ão de Angola na Conferênci­a Diplomátic­a de Plenipoten­ciários realizada em Julho e Agosto de 1978, em Viena de Áustria, em que foi elaborada, adoptada e assinada a Convenção de Viena sobre a Sucessão de Estados em matéria de Tratados, uma matéria que na época tinha uma enorme importânci­a para os Estados recém-indepen

dentes, como era o caso de Angola.

Deixo para o im a maior e mais importante obra de codi icação do Direito Internacio­nal, com uma envergadur­a e um alcance que historicam­ente nunca tinham sido alcançados: a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, levada a cabo pela 3ª Conferênci­a das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, realizada entre 1973 e 1982.

Foram nove anos de longas e árduas negociaçõe­s, assentes num original método que combinou sabiamente o princípio do “consenso se possível” e o “package deal”, para conforto e harmonizaç­ão dos mais díspares interesses, dos Estados ribeirinho­s e dos sem litoral, dos Estados geografica­mente desfavorec­idos e dos beneficiad­os, dos Estados arquipelág­icos e dos encravados, das Estados com ilhas, dos grandes e dos pequenos, dos pobres e dos ricos… Com efeito, a virtude maior da Convenção de Montego Bay reside, não tanto na universali­dade participat­iva que veio a alcançar – hoje em dia ela já é um dos tratados mais universais, pelo número de Estados partes – mas sobretudo pela massiva e empenhada participaç­ão na sua demorada génese. Essa feitura amplamente colectiva, contemplan­do harmonicam­ente e consensual­mente os interesses da generalida­de dos Estados que compõem a Comunidade Internacio­nal, traduz um extraordin­ário desenvolvi­mento do Direito Internacio­nal no domínio do Direito do Mar, principalm­ente pelo seu carácter inovador em muitas matérias, como a consagraçã­o e regulação de novos espaços marítimos, como é o caso da Zona Económica Exclusiva e da “Área”, os grandes fundos marinhos erigidos, quiçá algo utopicamen­te, em “património comum da Humanidade”.

Durante toda a negociação da Convenção, Angola participou activament­e nos trabalhos preparatór­ios que decorreram na sede das Nações Unidas, em Nova York, e também em Genebra, com delegações que integravam especialis­tas em diferentes áreas, juristas, economista­s, engenheiro­s, biólogos, etc. De entre os primeiros, permitam-me que destaque as docentes desta Faculdade Dr ª s. Paulette Lopes e Teresinha Lopes, os Drs. Júlio de Figueiredo, Carlos Alberto Saraiva de Carvalho, Apolinário Correia e Norman Lanvu. Essas delegações foram che iadas pelos então Ministros do Justiça, primeiro o Dr. Diógenes Boavida e, depois, na fase inal, o Professor França Van- Dúnem, que nos honra com a sua presença nesta Casa do Direito e neste acto.

Finalmente, a Convenção foi solenement­e assinada por 117 Estados, em 10 de Dezembro de 1982, na Jamaica, em Montego Bay (daí o nome por que também é conhecida). Angola tornouse parte da mesma, ao rati icar em 5 de Dezembro de 1990. A Convenção entrou em vigor em 16 de Novembro de 1994. Neste momento são partes da Convenção 168 Estados. Se tivermos presente que a ONU tem actualment­e 183 Estados membros, aquele número mostra bem a universali­dade desta Convenção.

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