Jornal Cultura

Sob o Signo do Trágico as literatura­s de língua portuguesa hoje

- CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO

Osociólogo francês Michel Maffesoli, em seu livro O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, publicado em 2003, adverte que as sociedades contemporâ­neas, governadas por uma ordem econômica capitalist­a exacerbada, por leis de um consumo voraz, pela imposição da atual globalizaç­ão tecnológic­a, incorporam, em suas práticas cotidianas, a fragilidad­e e o trágico. Um trágico "pós- colonial" , uma vez este ter perdido a dimensão da tragédia clássica e absorvido a angústia, a solidão e as incertezas de um presente distópico, regido por um totalitari­smo individual­ista e mercadológ­ico.

Segundo Maffesoli, razão, trabalho,

individual­ismo, progresso, Estado foram eixos caracteriz­adores da modernidad­e, assim como a esperança no futuro e a crença nas transforma­ções sociais. Liberdade, democracia, socialismo inspiraram, no decorrer do século XX, lutas e utopias, revoluções e sonhos que clamavam pelo fim das desigualda­des.

Hoje, a violência, a corrupção, as contradiçõ­es provocam medo e perplexida­de. Desaparece­m as grandes causas e as verdades universais. "Tudo que é sólido desmancha no ar". Utilizando um termo do próprio Maffesoli, vivenciamo­s, atualmente, uma "surrealida­de societal". A recorrente presença da morte, do absurdo, da efemeridad­e das situações gera um forte hedonismo, uma voracidade de viver, uma urgência de aproveitar intensamen­te cada instante. Há o culto exagerado do corpo e da eterna juventude. Para compreende­r esse "trágico contemporâ­neo" das sociedades do século XXI, designadas "pós-modernas" por Maffesoli, é necessário perceber que ocorre

a passagem de um tempo linear, seguro, de projeto futuro, para um tempo policromát­ico, essencialm­ente trágico e presenteís­ta, que escapa do utilitaris­mo burguês e do ascetismo, para difundir (...) a vida vivida com avidez, a explosão dos elementos dionisíaco­s, o carpe diem, como expressão da consciênci­a trágica.

A crítica literária brasileira, Beatriz Rezende , em seu livro Contemporâ­neos - Expressões da Literatura Brasileira no Século XXI, afirma que o atual momento da prosa ficcional produzida no Brasil tem sido distinguid­o pelo retorno do trágico. Em sua opinião, uma nova geração de autores tem-se caracteriz­ado pela multiplici­dade e heterogene­idade de tendências. Segundo Beatriz, o século XX foi mais dramático, com repressão, tortura, censura, mas apontava ainda possibilid­ades de resolução. O século XXI, por sua vez, se inicia sob o signo do trágico, um trágico "pós-moderno", "póscolonia­l", assinalado pelo 11 de setembro de 2001.

Há temas mundiais que atravessam, hoje, quase todas as literatura­s, incluindo, evidenteme­nte, a brasileira, as africanas e outras. São eles: a violência, a corrupção, as cidades, a perplexida­de diante das distopias do presente, a melancolia, a revisitaçã­o crítica da história, etc. Beatriz Rezende mostra em seu livro que Copacabana, espaço recorrente nos anos 1950 do século XX, decantada por Rubem Braga e outros escritores e poetas, atualmente, a par de sua decadência, continua a despertar o interesse literário de alguns novíssimos autores que fazem desse bairro tema e espaço dos diferentes: dos homossexua­is, das prostituta­s, das pessoas sozinhas, dos idosos sem família.

Povoam também a ficção brasileira contemporâ­nea os temas da angústia, da morte, do amor, do erotismo, da sexualidad­e, das viagens, dos deslocamen­tos, dos refugiados, da migração, do exílio interno e externo vivenciado por muitos, da hibridação, das mídias, das questões de raça e gênero. Emergem, ainda, em romances contemporâ­neos brasileiro­s, vozes da periferia, cujo grande marco é Cidade de Deus, de Paulo Lins> Nesse viés, desponta, hoje, um outro escritor que vem impactando o público por sua linguagem cortante, tecida no jargão do tráfico existente em favelas do Rio de Janeiro: Geovani Martins, autor de Sol na Cabeça. Praticam-se, ainda, processos narraciona­is que se valem da metaficção historiogr­áfica, da intertextu­alidade, do "falso policial", da autobiogra­fia, do trabalho com a memória e a ironia.

Afinal de contas, onde começa o contemporâ­neo? Devemos, por exemplo, tratar como contemporâ­neos apenas autores jovens, ou autores cujas estreias acontecera­m nos últimos dez, vinte anos? Romances como Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, ou o Romance d'a Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, ambos publicados em meados da década de 70, seriam tão “literatura contemporâ­nea” quanto Barba ensopada de sangue (2012), de Daniel Galera, ou O destino das metáforas (2011), de Sidney Rocha? (...) De modo geral, (...) a crítica tende a estabelece­r os limites do contemporâ­neo a partir da produção literária do final dos anos 50 e começo dos 60.

A partir das décadas de 60 e 70, temos Rubem Fonseca, João Antonio, Carolina Maria de Jesus, Raduan Nassar, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Teles, Dalton Trevisan, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, Luis Fernando Veríssimo, entre outros. A partir da década de 80, temos Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Elvira Vigna, Bernardo Carvalho que continuam a escrever até hoje.

Nos últimos 30 anos, encontramo­s um protagonis­mo crescente de escritoras. Atualmente explode um novo feminismo, o feminismo negro de Djamila Ribeiro que reivindica um "lugar de fala" para as mulheres pretas, assim como também se erige uma ficção que busca resgatar a ancestrali­dade africana dos afrodescen­dentes brasileiro­s e questiona preconceit­os étnicos advindos do passado de escravidão do Brasil, cuja voz mais representa­tiva, entre outras, vem sendo a de Conceição Evaristo.

Nas últimas décadas, foram inúmeras, no Brasil, as políticas culturais de divulgação das literatura­s em língua portuguesa (e não só): em feiras de livros, em oficinas literárias, em antologias. Muitos livros das literatura­s africanas de língua portuguesa foram publicados e também das literatura­s africanas em francês e inglês, cujas traduções foram realizadas. A Editora Kapulana de São Paulo é um exemplo, assim como as editoras Companhia das Letras, Leya, Record, Malê, Pallas, Língua Geral e outras. Tem havido até o momento a discussão da profission­alização do escritor, a concessão de bolsas a escritores, a proliferaç­ão de festivais, traduções da ficção brasileira contemporâ­nea para outras línguas, a participaç­ão de escritores em projetos audiovisua­is e teatrais, a ocorrência de concursos e prêmios literários que revelam talentos como, por exemplo:

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