Jornal Cultura

Salas Neto apresenta As Kassumunas do Bairro Indígena

- LEONEL COSME

Há algumas semanas, li no EXPRESSO, com grande destaque, um artigo de José Eduardo Agualusa intitulado Por uma irmandade da língua, e logo pensei em Abel e Caim e numa antiga frase de Pitigrilli, – eram mais do que inimigos: irmãos - ponderando que uma irmandade se faz com afectos e que a língua é um meio de os comunicar.

Mas vejamos algumas passagens desse artigo:

“Testemunhe­i em diversas ocasiões o genuíno espanto de cidadãos portuguese­s, em visita a Angola ou a Moçambique, quando percebem que a palavra lusofonia está longe de ser consensual, podendo levantar, pelo contrário, acesa polémica.

Em primeiro lugar, é importante ter em conta que em todos os países africanos, mas também no Brasil, em Timor-Leste, e até em Portugal, a língua portuguesa não está sozinha. Em Portugal o mirandês é a segunda língua o icial do país, desde 1999, lado a lado com a língua portuguesa.”

Questionan­do, vamos por partes:

a) Nada mais natural que um cidadão português que viaje para Angola e Moçambique se espantasse se os seus interlocut­ores, se não fossem lusófobos, não tivessem uma ideia consensual do que signi ica a palavra lusofonia: conjunto de falantes do português ou países que têm como o icial a língua portuguesa. E não é crível, hoje, que os africanos, mesmo os que não foram à escola, mas também falam a língua do colonizado­r, pensem que ela, útil como é, seja ainda uma língua de extermínio.

b) Em nenhum país, fora de Portugal, a língua portuguesa está sozinha. Em Portugal, o mirandês é simplesmen­te uma centenária língua regional portuguesa, não nacional. Sendo ainda falada por uma minoria de habitantes de uma zona trasmontan­a contígua a Espanha, - onde se falam outras análogas - a denominaçã­o adequada seria dialecto. O mesmo se dirá de outras línguas faladas por povos das excolónias de Portugal, como em Angola são, por exemplo, os Ganguela, Nhaneka-Humbe, Ambó ou Herero, já nem falando do povo Koysan, não bantu, cuja língua se faz com cliques. Todavia, na Namíbia, dado o seu elevado número de falantes, ela é considerad­a e estudada como uma língua nacional.

Retomando o artigo:

“O português já foi língua de extermínio no Brasil, onde em cinco séculos se perderam muitas centenas de idiomas indígenas, alguns absolutame­nte originais, isto é, sem parentesco com outros. Em Angola, as línguas nacionais resistiram ao português, que teve um cresciment­o assombroso nos últimos anos. (…)

Estamos (ele?) criando um espaço de língua portuguesa em que todas as partes participam de forma livre, em situação de relativa igualdade, sem dominados nem dominadore­s. Uma lusofonia horizontal, que não se esgota, longe disso, na língua comum. Uma irmandade autêntica. (…) O português tem de avançar em conjunto com as restantes línguas nacionais de cada país. Não pode ser percebido como um inimigo, mas como parceiro.”

Continuand­o a questão: c) Primeiro é preciso não confundir língua com idiolecto, gíria ou patois…

À consideraç­ão da língua portuguesa como inimiga, - foi num certo tempo e num certo espaço - acresceu outra: a de factor de unidade nacional, mesmo que para muitos falantes não seja a língua-mãe. Tenha-se em conta que na génese da iloso ia-social bantu o interesse comunitári­o prevalece sobre o individual.

De resto, em 1965, na Guiné, Amilcar Cabral dizia:”Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de mais nada senão um instrument­o para os homens

se relacionar­em uns com os outros; é um instrument­o, um meio para falar, para exprimir as readades da vida e do mundo.” Em Moçambique, muitos anos depois, Fernando Ganhão, reitor da Universida­de Mondlane, recordava:”Teria sido impossível que em 25 de Junho de 1975 (data da independên­cia de Moçambique) se tivesse escolhido uma das várias línguas moçambican­as para língua nacional, porque as querelas que trazia fariam decerto perigar a existência de estado uno, teriam impossibil­itado a unidade que criámos no seio o nosso Partido Frelimo (…). Em Angola, em 1977, Agostinho Neto, admitindo a possibilid­ade de aglutinar alguns dialectos, falava para os escritores:”O uso da língua portuguesa, como língua o icial, veicular e utilizável na nossa literatura, não resolve os nossos problemas.(..) Todo o desenvolvi­mento do problema linguístic­o, maturalmen­te, dependerá também da extinção das barreiras regionais, da consolidaç­ão da unidade nacional, da extinção dos complexos e taras herdadas colonialis­mo, e do desenvolvi­mento económico.”

Só que a prática vem demonstran­do que tem sido mais fácil adoptar o português como língua nacional do que aglutinar alguns dialectos para o substituir…

Retomando o artigo:

“A língua portuguesa é uma construção conjunta de todos aqueles que a falam – é assim desde há séculos. A minha língua – aquela de que me sirvo para escrever - não se restringe às fronteiras de Angola, de Portugal ou do Brasil. A minha língua é a soma de todas as suas variantes. É plural e democrátic­a. A sua imensa riqueza está nessa diversidad­e e na capacidade de se afeiçoar a geogra ias diversas, na forma como vem namorando outros idiomas, recolhendo deles palavras e emoções. Aprisionar a língua portuguesa às fronteiras de Portugal (ou de Angola ou do Brasil) seria mutilá-la, roubar-lhe memória e destino. Com o colapso do Império, o português libertou-se. É nessa língua livre que eu me reconheço, e é por ela que luto.”

d) Mesmo sem entrar no domínio das ciências da linguagem, teremos de distinguir a língua da fala. Como nos ensinaram, a língua de ine-se como um código, entendo por isso a criação de correspond­ência entre ‘imagens auditivas’ e ‘conceitos’ A fala é a utilização, o emprego, desse código pelos sujeitos falantes. Correlativ­amente, qualquer actividade ligada à linguagem pertence à fala.

e) Ensinou-nos Saussure que os costumes de uma nação tèm uma incidência sobre a língua e, por outro lado, é a língua que faz a nação. Donde, ao aproximar-se a linguístic­a da etnologia, não podemos ignorar todas as relações que podem existir entre a história de uma língua, de uma raça ou de uma civilizaçã­o.

f) Diz-nos Agualusa que a língua de que se serve para escrever os seus livros é “a soma de todas variantes do português e que “a sua maior riqueza está nessa diversidad­e e na capacidade de se afeiçoar a geogra ias diversas, na forma como vem namorando outros idiomas, recolhendo deles palavras e emoções.” Mas como quando escreve nos jornais Agualusa segue o português normativo, temos de concluir que ele escreve conforme as circunstân­cias e, como também declarou há anos numa entrevista cuja data já não me ocorre, escrevo para que gostem de mim, respondend­o assim à regra tríplice de Sartre: escrever o quê, para quê, para quem?

g) Disse Ortega y Gasset que eu sou eu e a minha circunstân­cia. É um ditame que se aplica a todos nós. Agualusa nasceu em Angola, em 1960, e aos quinze anos, estando Angola em pé de guerra, teve de acompanhar os pais, que não eram angolanos, no seu regresso a Portugal. Aqui Agualusa se fez homem, estudou e chegou a fazer jornalismo em Lisboa. Ao cabo de alguns anos, mudou- se para o Brasil, com

“Ensinou-nos Saussure que os costumes de uma nação tèm uma incidência sobre a língua e, por outro lado, é a língua que faz a nação “

gosto e proveito ( aqui escreveu e publicou livros), porque não sentia Portugal como ubi bene, ibi pátria, nem a língua que falava como Fernando Pessoa: a minha pátria é a língua portuguesa. Apesar de ter dois bilhetes de identidade, um angolano e outro português ( julgo eu) , para ele, como declarou numa entrevista, em 2002, a identidade tem mais a ver com o percurso do que com o lugar onde se nasce. E recentemen­te, noutra entrevista em que lhe perguntara­m como era e onde gostaria de morrer, respondeu: Quem eu sou não ocupa muitas palavras: angolano ou ninguém, quase sem raça. Morrer, em Benguela ou Olinda.

Para concluir: como escritor heterodoxo, umas vezes irónico e iconoclast­a, outras impression­ado pelas personagen­s e cenários que cria, ele suscita, pelo menos, curiosidad­e. Navegador, agora estacionad­o em Moçambique, assenta-lhe bem este verso de quem foi também emigrante no Brasil e viajante em África, Miguel Torga, mas para glori icar Fernão de Magalhães (que morreu em viagem): Ter um destino/é não caber no berço/onde o corpo nasceu/ é transpor as fronteiras/uma a uma/e morrer sem nenhuma. O que não anula o sentido de pertença, por nascimento, afecto e memória, que Torga tinha do ser que era.

Ora, não se confunda um viajante com um apatriota, pois uma interrogaç­ão persistiri­a: é possível a um ser terrígeno, como é o homem, no pleno uso das suas faculdades mentais, existir sem ligações às raízes, sejam elas respeitáve­is ou não?

Um ditado angolano assevera: as raízes seguram as árvores. E um botânico lembrará que, no reino das plantas, só as tillandsia­s não precisam de solo: epí itas, crescem sobre outras plantas ou árvores, absorvendo seus nutrientes e a humidade do ar; litó itas, crescem até em rochas e no deserto, desde que tenham como vizinhos outros vegetais que lhes forneçam nutrientes. Mas a polinizaçã­o, que lhes permitirá continuar como espécie, só será possível recebendo o pólen de outras espécies irmãs, dado que nenhuma se autofecund­a.

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