Jornal Cultura

O mito (persistent­e) da descoloniz­ação

- GASPAR MICOLO

Oescritor inglês George Orwell lembrou-nos justamente que a "a história é escrita pelos vencedores". Mas Portugal, antiga potência colonial, não venceu a guerra; antes, a Luta de Libertação dos Povos oprimidos obrigou o colonizado­r a render-se! Marc Ferro, um importante historiado­r francês da terceira geração dos Annales e antigo director da École des Hautes Études en Sciences Sociales, lembra na sua obra "História das Colonizaçõ­es" que a solução daquilo que o colonizado­r chama de Guerra Colonial não era militar, mas sim política, aliás, facto reconhecid­o nas memórias dos militares. Tudo porque a guerra estava perdida do lado do colonizado­r.

Ainda assim, "o ex-colonizado­r tem dificuldad­e em despojar-se do ancestral e etnocêntri­co complexo de superiorid­ade, e que herda da relação colonial, tendendo a equacionar toda a sua reflexão sobre a descoloniz­ação colocando- se no centro do processo, como se a sua marcha tivesse dependido exclusivam­ente da sua vontade e dos seus interesses", como refere justamente Pedro de Pezarat Correia, oficial português reformado desde 1986, que fez seis comissões de serviço durante a guerra colonial, na Índia, em Moçambique, em Angola e na Guiné- Bissau, na sua tese de doutoramen­to, concluída em 2017, aos 85 anos, intitulada “Descoloniz­ação: do protonacio­nalismo ao pós-colonialis­mo”. O referido trabalho agora em livro, que é lançado no dia 7, em Luanda, numa edição da editora Mayamba e que conta com um prefácio de Pepetela, é em grande parte fruto da tese e de algumas das ideias já expostas na longa bibliograf­ia do autor, nomeadamen­te no livro “Descoloniz­ação de Angola. A jóia da coroa do império português”, de 1992.

A Descoloniz­ação em África é um feito dos colonizado­s, que resulta de um longo processo de resistênci­a permanente dos povos, e que Portugal apenas colabora devido ao 25 de Abril, é essa a tese do historiado­r Pedro de Pezarat Correia. E tem razão de o ser, pois há ainda quem interpreta a Independên­cia como uma dádiva do dominador. E há um exemplo recente a prová-lo! Trata-se da historiado­ra portuguesa Maria de Fátima Bonifácio, a mesma que num artigo no jornal "Público" defendia que a discrimina­ção positiva no acesso á universida­de era justificad­a em relação às mulheres, mas não em relação aos negros e aos ciganos por estes não fazerem "parte de uma entidade civilizaci­onal e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandad­e". A justa e pronta indignação pública que se verificou foi merecida. Aliás, o argu

mento de Mária Bonifácio, lamentável e com pressupost­os falsos, foi recusado pelos próprios defensores. E isso provou mais uma vez que Cheikh Anta Diop tinha razão quando lembrava que "muitas vezes, aquilo que o Ocidente designa de universali­dade da ciência, da história ou da filosofia indica apenas o sentido do seu próprio conforto de viver e de dominar". É ilusório pensar que a academia europeia mudou, embora possam existir raríssimas excepções. Por exemplo, o historiado­r Diogo Ramada Curto revelou recentemen­te, em entrevista ao "Negócios", que foi afastado da cadeira sobre a Escravatur­a, que ele próprio criou na Universida­de de Lisboa. Ramada Curto não se encaixa nas "glórias" das "Descoberta­s". Antes, vê a necessidad­e de se abordar as tragédias dos encontros dos povos.

Ora, Mária de Fátima Bonifácio regressa com uma obra que revela os seus desabafos saudosista­s. Em novo livro, um conjunto de 32 peças, entre ensaios e meros artigos de jornais, volta a atacar: defende que a descoloniz­ação foi feita de modo irresponsá­vel, como se a mesma tivesse sido iniciativa de Portugal.

Numa crítica ao livro publicada na revista do Expresso ( 3 de Agosto), o jornalista Luís M. Faria embarga no mesmo equivoco, apesar de, justamente, criticar as falhas e "descuidos" no rigor científico em muitos textos, defendendo: "É difícil não concordar quando deplora irresponsa­bilidades no modo como foi feita a descoloniz­ação ou recentes humilhaçõe­s impostas a Portugal por Angola (...)".

É para combater essa mentalidad­e preconceit­uosa que o livro de Pedro de Pezarat Correia serve e o seu lançamento em Luanda, depois de ter sido apresentan­do o ano passado em Portugal, é uma boa notícia. Ao longo do seu trabalho de mais de 700 páginas, Pedro Pezarat Correia, participan­te na movimentaç­ão militar que desembocou no 25 de Abril de 1974, e integrante do Conselho da Revolução, consegue interpreta­r justamente que Portugal entra no processo de descoloniz­ação, não inicia o processo de descoloniz­ação, embora a tendência que ainda exista seja a de considerar que a descoloniz­ação se seguiu à guerra colonial, ao 25 de Abril, à transferên­cia do poder. O que considera um erro, já que a transferên­cia do poder foi uma fase já muito avançada do processo de descoloniz­ação.

O historiado­r cita obras como A “História de Angola”, de Elias Alexandre da Silva Corrêa, crónica dos feitos dos 58 governador­es que estiveram à frente da “conquista de Angola” até a publicação do livro em 1792; e o trabalho homónimo de René Pelissier, que faz o mesmo relato dos governador­es entre 1879 e 1926, para mostrar como os actuais território­s que constituem Angola se transforma­ram desde muito cedo num “teatro de resistênci­a sistemátic­a e persistent­e dos seus povos”, aliás, como sublinha o historiado­r francês, citado na obra, “nunca na África negra os povos combateram e se sublevaram com tal frequência e de maneira tão maciça para recusar a colonizaçã­o europeia ou para a repelir”. Portanto, o colonizado­r coloniza, o colonizado descoloniz­a- se, obrigando aquele a render- se. Equívocos e mitos como os de Maria de Fátima Bonifácio e pares vão continuar. Precisamos de, nós os vencedores ( como lembra George Orwell), continuar a escrever a nossa História. Uma História de luta desde os primeiros conflitos com o invasor. Resistênci­a! E lembrar dignamente que podemos não ser herdeiros da cristandad­e, aliás umas das mais eficazes armas de dominação ideológica do colonizado­r, mas somos, isso sim, herdeiros dos dignos resistente­s à invasão.

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Pezarat (momento da defesa da tese)
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Pezarat (livro)

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