Jornal de Angola

O futuro incerto de Mursi

- ROGER GODWIN |

De maneira algo inesperada, tendo em conta os recentes desenvolvi­mentos dos casos que ainda estavam sob a sua alçada, a justiça egípcia acaba de condenar à morte o antigo presidente Mohamed Mursi e mais 100 dos mais fiéis apoiantes, todos da extinta irmandade muçulmana.

Esta decisão já foi contestada com sangue na região do Sinai por parte de grupos islâmicos que não aceitam nem reconhecem a legitimida­de de quem actualment­e governa o país, a quem acusam por tudo o que negativo por lá se está a passar, nomeadamen­te, de estar também a controlar a justiça. Depois de o tribunal ter reduzido a uma pena simbólica a condenação a prisão perpétua do antigo presidente Hosni Mubarak, muitos imaginavam que Mohamed Mursi teria um tratamento semelhante ou, pelo menos, não tão radical como a aplicação da pena de morte.

Mas isso não sucedeu e as acusações de traição e de responsabi­lidade directa na morte de dezenas de egípcios foram considerad­as provadas por parte de quem o julgou e mereceram a drástica e contundent­e sentença de condenação à morte.

Embora se trate de uma sentença ditada por um tribunal de primeira instância e, como tal, passível ainda de diversos recursos, a verdade é que já foi inicialmen­te contestada pelos apoiantes de Mohamed Mursi em atentados nos quais norreram três juízes que nada tiveram directamen­te a ver com a condenação agora anunciada.

Depois de mais de dois anos de detenção, um dos quais sem qualquer culpa formada, Mohamed Mursi havia já sido condenado em Abril passado a 20 anos de prisão na sequência de um primeiro julgamento onde foi dirimida a acusação de ter ordenado a detenção e a tortura de centenas de pessoas que em 2013 se manifestar­am nas ruas a exigir a sua própria demissão. Este primeiro julgamento, que não tem nada a ver com segundo onde a acusação maior era a da prática de crime de traição, é igualmente passível de ter a sua sentença interrompi­da por uma acção de recurso que, embora ainda não esteja concretiza­da, deve sê-lo dentro de pouco tempo.

De acordo com a Constituiç­ão do Egipto, acima de qualquer decisão judicial, mesmo a da condenação à pena capital está a última palavra que tem sempre que ser dada pelas autoridade­s religiosas, para o bem ou para o mal.

Até ao momento, essas autoridade­s religiosas ainda não se pronunciar­am sobre o assunto, esperando-se que apenas o façam quando estiverem esgotadas todas as possibilid­ades de recurso.

O grande problema do Egipto é que enquanto decorrem os prazos para que esses recursos possam ser apresentad­os, a população fica refém de uma situação de enorme instabilid­ade e que ameaça colocar mesmo em causa as próprias instituiçõ­es do Estado.

O mundo árabe e africano está neste momento dividido no que respeita à razoabilid­ade da aplicação da pena de morte a um antigo Presidente da República eleito de forma democrátic­a e que tem contra si o facto de se ter deixado seduzir pela ala mais radical dos aliados islâmicos.

Países como a Arábia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos, que já se tinham disponibil­izado para apoiar alguns dos projectos económicos com que o actual Presidente da República contava aplicar para relançar a economia do país, manifestar­am já algum desconfort­o por esta extrema decisão judicial.

Esse desconfort­o, bem visível no cancelamen­to de uma visita que altos responsáve­is daqueles países deveriam fazer esta semana à cidade do Cairo, pode colocar em causa as boas intenções democrátic­as do antigo general que agora comanda os destinos do país e ameaçar algumas das conquistas que entretanto já foram feitas. Do ponto de vista da segurança, mesmo com a declaração do Estado de emergência em toda a região da Península do Sinai, a verdade é que esta região continua a ser marcada por atentados e ataques bombistas, o último dos quais custou a vida aos juízes que só se tornaram alvo por representa­rem, para esses grupos radicais, o símbolo da justiça, cuja legitimida­de eles não aceitam.

Observador­es internacio­nais consideram que a justiça egípcia está a utilizar a pena de morte com demasiada ligeireza e consideram que isso pode colocar em causa todos os esforços do presidente Sisi em devolver ao país a tranquilid­ade capaz de criar o ambiente conducente à consolidaç­ão da democracia e ao progresso económico e social.

Algumas pressões internacio­nais que estão a ser feitas no sentido de evitar a banalizaçã­o do uso da pena de morte esbarram na própria Constituiç­ão do país, que marca uma separação de poderes que torna os juízes imunes a todas as intromissõ­es dos dirigentes políticos.

Nalguns casos e devido à pressão popular, a que parece mais sensível, a justiça egípcia por vezes recua e nas decisões aos apelos dos condenados costuma rever em baixa algumas das sentenças aplicadas em instâncias inferiores. Só que, no entretanto e enquanto não rectifica alguns “excessos” sentenciad­os em primeira instância, a justiça egípcia dá de si uma imagem de poder pouco enquadrado naquilo que é a realidade e os objectivos interesses do país. E, devido a isso, o país é assolado frequentem­ente por ondas de uma enorme violência que quase sempre se saldam por elevado número de vítimas mortais o que impede que o Egipto se reencontre na paz e harmonia que o mundo deseja.

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