O futuro incerto de Mursi
De maneira algo inesperada, tendo em conta os recentes desenvolvimentos dos casos que ainda estavam sob a sua alçada, a justiça egípcia acaba de condenar à morte o antigo presidente Mohamed Mursi e mais 100 dos mais fiéis apoiantes, todos da extinta irmandade muçulmana.
Esta decisão já foi contestada com sangue na região do Sinai por parte de grupos islâmicos que não aceitam nem reconhecem a legitimidade de quem actualmente governa o país, a quem acusam por tudo o que negativo por lá se está a passar, nomeadamente, de estar também a controlar a justiça. Depois de o tribunal ter reduzido a uma pena simbólica a condenação a prisão perpétua do antigo presidente Hosni Mubarak, muitos imaginavam que Mohamed Mursi teria um tratamento semelhante ou, pelo menos, não tão radical como a aplicação da pena de morte.
Mas isso não sucedeu e as acusações de traição e de responsabilidade directa na morte de dezenas de egípcios foram consideradas provadas por parte de quem o julgou e mereceram a drástica e contundente sentença de condenação à morte.
Embora se trate de uma sentença ditada por um tribunal de primeira instância e, como tal, passível ainda de diversos recursos, a verdade é que já foi inicialmente contestada pelos apoiantes de Mohamed Mursi em atentados nos quais norreram três juízes que nada tiveram directamente a ver com a condenação agora anunciada.
Depois de mais de dois anos de detenção, um dos quais sem qualquer culpa formada, Mohamed Mursi havia já sido condenado em Abril passado a 20 anos de prisão na sequência de um primeiro julgamento onde foi dirimida a acusação de ter ordenado a detenção e a tortura de centenas de pessoas que em 2013 se manifestaram nas ruas a exigir a sua própria demissão. Este primeiro julgamento, que não tem nada a ver com segundo onde a acusação maior era a da prática de crime de traição, é igualmente passível de ter a sua sentença interrompida por uma acção de recurso que, embora ainda não esteja concretizada, deve sê-lo dentro de pouco tempo.
De acordo com a Constituição do Egipto, acima de qualquer decisão judicial, mesmo a da condenação à pena capital está a última palavra que tem sempre que ser dada pelas autoridades religiosas, para o bem ou para o mal.
Até ao momento, essas autoridades religiosas ainda não se pronunciaram sobre o assunto, esperando-se que apenas o façam quando estiverem esgotadas todas as possibilidades de recurso.
O grande problema do Egipto é que enquanto decorrem os prazos para que esses recursos possam ser apresentados, a população fica refém de uma situação de enorme instabilidade e que ameaça colocar mesmo em causa as próprias instituições do Estado.
O mundo árabe e africano está neste momento dividido no que respeita à razoabilidade da aplicação da pena de morte a um antigo Presidente da República eleito de forma democrática e que tem contra si o facto de se ter deixado seduzir pela ala mais radical dos aliados islâmicos.
Países como a Arábia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos, que já se tinham disponibilizado para apoiar alguns dos projectos económicos com que o actual Presidente da República contava aplicar para relançar a economia do país, manifestaram já algum desconforto por esta extrema decisão judicial.
Esse desconforto, bem visível no cancelamento de uma visita que altos responsáveis daqueles países deveriam fazer esta semana à cidade do Cairo, pode colocar em causa as boas intenções democráticas do antigo general que agora comanda os destinos do país e ameaçar algumas das conquistas que entretanto já foram feitas. Do ponto de vista da segurança, mesmo com a declaração do Estado de emergência em toda a região da Península do Sinai, a verdade é que esta região continua a ser marcada por atentados e ataques bombistas, o último dos quais custou a vida aos juízes que só se tornaram alvo por representarem, para esses grupos radicais, o símbolo da justiça, cuja legitimidade eles não aceitam.
Observadores internacionais consideram que a justiça egípcia está a utilizar a pena de morte com demasiada ligeireza e consideram que isso pode colocar em causa todos os esforços do presidente Sisi em devolver ao país a tranquilidade capaz de criar o ambiente conducente à consolidação da democracia e ao progresso económico e social.
Algumas pressões internacionais que estão a ser feitas no sentido de evitar a banalização do uso da pena de morte esbarram na própria Constituição do país, que marca uma separação de poderes que torna os juízes imunes a todas as intromissões dos dirigentes políticos.
Nalguns casos e devido à pressão popular, a que parece mais sensível, a justiça egípcia por vezes recua e nas decisões aos apelos dos condenados costuma rever em baixa algumas das sentenças aplicadas em instâncias inferiores. Só que, no entretanto e enquanto não rectifica alguns “excessos” sentenciados em primeira instância, a justiça egípcia dá de si uma imagem de poder pouco enquadrado naquilo que é a realidade e os objectivos interesses do país. E, devido a isso, o país é assolado frequentemente por ondas de uma enorme violência que quase sempre se saldam por elevado número de vítimas mortais o que impede que o Egipto se reencontre na paz e harmonia que o mundo deseja.