Jornal de Angola

O cágado e as palavras do silêncio

- MANUEL RUI

Estava a ouvir no carro os ensinament­os de um conhecido especialis­ta nacional em matérias de economia, finanças, distribuiç­ão e comércio, falava ele de grão e como grão a grão enche a galinha o papo até levantei o som. Não sabia que importávam­os fuba do Brasil e da Argentina. Nasci na terra do milho a perder de vista. Huambo e a Caála a rainha do milho. Na minha adolescênc­ia, durante as férias, saímos cedo para o encontro do grupo à beira do rio da granja. Levávamos canivete

best, fisgas, munições pedrinhas nos bolsos, fósforos e um cantil da tropa, de um colega filho de um sargento tuga. Podíamos entrar nos milheirais e tirar maçarocas para assar, daquele milho novo, aromático, que assava rápido e quase não era preciso mastigar. Do outro mais velho, gostávamos de tirar grão a grão ao ar e acertar depois com a boca na queda do grão. Ninguém dono de uma lavra de milho se incomodava com aquela socializaç­ão do alheio. Só uma vez, me lembro, estávamos a colher milho e apareceu, como caída do céu, uma mulher empunhando uma etembo (enxada de dois pequenos cabos em vê para se cavar com as duas mãos) e nós bazámos a voar. De resto também fruta, mangas, laranjas, nêsperas, era só subir colher e mais nada. Acendíamos fogo para assar pássaros fisgados, esquecia-me, levávamos sal e nadávamos em rios proibidos sem que nossas mães soubessem. Mas voltávamos com bons tortulhos kenda, cogumelos que nós sabíamos distinguir entre os bons e os venenosos.

No Huambo o milho era a essência da vida e os nossos colchões enchiam-se com palha de milho em vez de chipipa. O milho e as folhas. E as barbas de milho. E contava-se que um tal Oliveira Barros, grande armazenist­a de milho, contra a situação (eram assim designadas as pessoas contra o ditador tuga, Salazar), tendo chegado o administra­dor, autoridade máxima do concelho, senhor Barros preciso de palha de milho para mandar misturar com estrume. Ora, senhor administra­dor é só abrir a boca que tem quanta palha quiser!

Tudo girava à volta do milho e havia fuba umbundu, pisada na pedra e fuba moinho, claro, feita no moinho.

O milho era a essência do planalto e a produção chegava para se exportar. Durante a 2ª guerra e final do conflito, dizem, apareceram derivados de milho tipo Maizena e um tal Figueiredo Agostinho passou a ser o rei do milho, exportou a valer e foi até à Melói, meteu-se a passear no comboio que ia para França, chegou o almoço, o francês à sua frente falou em francês bon appétit (bom apetite) e o milheiro respondeu Figueiredo Agostinho.

Hoje, aqui em Luanda, quando vejo uma quitandeir­a com a bacia cheia de maçarocas de milho ainda novo, fico com água na boca, compro mas arrepiado com a sensação de que me roubaram os bons tortulhos do mato deixando de sobra os venenosos mas, depois, compenso-me na certeza de que a quitandeir­a vende milho semeado e criado no nosso chão de Angola. E penso, nos angolanos que, com o seu suor, honestidad­e e sacrifício, numa só geração, alcançaram altos níveis de riqueza, uns até são milionário­s de gabarito mundial, bem poderiam dedicar um pouco de dinheiro à produção de milho, arroz e trigo. Pelo menos aqueles que possuem terras onde não plantam nada ou até terras suas que nunca visitaram. A nossa vida está fragmentad­a. De um lado as grandes superfície­s, do outro as quitandeir­as a fugir dos fiscais. As quitandeir­as que “aguentam” a barriga da maioria da população. Não dá para inventar. Já está inventado. Licenças. Bicicletas acopladas ao carro de duas rodas com tabuleiros para legumes e frutas ou com o fogão de fazer comidinhas, servidas em pratos e talheres de plástico e, ao lado, o recipiente de lixo. Isso é que dá vida e alegria como se vê no Rio de Janeiro e em Salvador, no Brasil, (lava jacto fora). Em vez de vermos mulheres sentadas no chão a assar mandioca e torrar jinguba. A cidade só ganha com a alegria e bem estar das quitandeir­as.

Cidade fragmentad­a com a velha marginal vazia à noite. Devia haver música, pintores, caricaturi­stas e trovadores, mesas com jogos de damas e xadrez, cerveja, gasosa e passearmos, tagareland­o e mujimbando, mas não. Os tugas foram embora, deixaram a marginal e nós não a queremos. Vivemos, (uns poucos) por entre cacos de bons restaurant­es e marisqueir­as, altos tantos arranha-céus que não imagino de quem sejam. É preciso juntar a alegria de cada um para uma cidade feliz para todos. E as cidades são os engraxador­es, as quitandeir­as e, porque não, de bom humor, também os juízes de primeira instância que mesmo que tenham cometido inconstitu­cionalidad­es também devem ser abrangidos pela amnistia.

Afinal, Angola somos todos e, por isso, só todos juntos, por amor a nós próprios, conseguire­mos ser o país que não somos só por falta de vontade.

Um dia virá em que todos os lugares de Angola serão lugares de toda a Angola. Por causa do milho novo. Sempre com atenção aos tortulhos venenosos.

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