O cágado e as palavras do silêncio
Estava a ouvir no carro os ensinamentos de um conhecido especialista nacional em matérias de economia, finanças, distribuição e comércio, falava ele de grão e como grão a grão enche a galinha o papo até levantei o som. Não sabia que importávamos fuba do Brasil e da Argentina. Nasci na terra do milho a perder de vista. Huambo e a Caála a rainha do milho. Na minha adolescência, durante as férias, saímos cedo para o encontro do grupo à beira do rio da granja. Levávamos canivete
best, fisgas, munições pedrinhas nos bolsos, fósforos e um cantil da tropa, de um colega filho de um sargento tuga. Podíamos entrar nos milheirais e tirar maçarocas para assar, daquele milho novo, aromático, que assava rápido e quase não era preciso mastigar. Do outro mais velho, gostávamos de tirar grão a grão ao ar e acertar depois com a boca na queda do grão. Ninguém dono de uma lavra de milho se incomodava com aquela socialização do alheio. Só uma vez, me lembro, estávamos a colher milho e apareceu, como caída do céu, uma mulher empunhando uma etembo (enxada de dois pequenos cabos em vê para se cavar com as duas mãos) e nós bazámos a voar. De resto também fruta, mangas, laranjas, nêsperas, era só subir colher e mais nada. Acendíamos fogo para assar pássaros fisgados, esquecia-me, levávamos sal e nadávamos em rios proibidos sem que nossas mães soubessem. Mas voltávamos com bons tortulhos kenda, cogumelos que nós sabíamos distinguir entre os bons e os venenosos.
No Huambo o milho era a essência da vida e os nossos colchões enchiam-se com palha de milho em vez de chipipa. O milho e as folhas. E as barbas de milho. E contava-se que um tal Oliveira Barros, grande armazenista de milho, contra a situação (eram assim designadas as pessoas contra o ditador tuga, Salazar), tendo chegado o administrador, autoridade máxima do concelho, senhor Barros preciso de palha de milho para mandar misturar com estrume. Ora, senhor administrador é só abrir a boca que tem quanta palha quiser!
Tudo girava à volta do milho e havia fuba umbundu, pisada na pedra e fuba moinho, claro, feita no moinho.
O milho era a essência do planalto e a produção chegava para se exportar. Durante a 2ª guerra e final do conflito, dizem, apareceram derivados de milho tipo Maizena e um tal Figueiredo Agostinho passou a ser o rei do milho, exportou a valer e foi até à Melói, meteu-se a passear no comboio que ia para França, chegou o almoço, o francês à sua frente falou em francês bon appétit (bom apetite) e o milheiro respondeu Figueiredo Agostinho.
Hoje, aqui em Luanda, quando vejo uma quitandeira com a bacia cheia de maçarocas de milho ainda novo, fico com água na boca, compro mas arrepiado com a sensação de que me roubaram os bons tortulhos do mato deixando de sobra os venenosos mas, depois, compenso-me na certeza de que a quitandeira vende milho semeado e criado no nosso chão de Angola. E penso, nos angolanos que, com o seu suor, honestidade e sacrifício, numa só geração, alcançaram altos níveis de riqueza, uns até são milionários de gabarito mundial, bem poderiam dedicar um pouco de dinheiro à produção de milho, arroz e trigo. Pelo menos aqueles que possuem terras onde não plantam nada ou até terras suas que nunca visitaram. A nossa vida está fragmentada. De um lado as grandes superfícies, do outro as quitandeiras a fugir dos fiscais. As quitandeiras que “aguentam” a barriga da maioria da população. Não dá para inventar. Já está inventado. Licenças. Bicicletas acopladas ao carro de duas rodas com tabuleiros para legumes e frutas ou com o fogão de fazer comidinhas, servidas em pratos e talheres de plástico e, ao lado, o recipiente de lixo. Isso é que dá vida e alegria como se vê no Rio de Janeiro e em Salvador, no Brasil, (lava jacto fora). Em vez de vermos mulheres sentadas no chão a assar mandioca e torrar jinguba. A cidade só ganha com a alegria e bem estar das quitandeiras.
Cidade fragmentada com a velha marginal vazia à noite. Devia haver música, pintores, caricaturistas e trovadores, mesas com jogos de damas e xadrez, cerveja, gasosa e passearmos, tagarelando e mujimbando, mas não. Os tugas foram embora, deixaram a marginal e nós não a queremos. Vivemos, (uns poucos) por entre cacos de bons restaurantes e marisqueiras, altos tantos arranha-céus que não imagino de quem sejam. É preciso juntar a alegria de cada um para uma cidade feliz para todos. E as cidades são os engraxadores, as quitandeiras e, porque não, de bom humor, também os juízes de primeira instância que mesmo que tenham cometido inconstitucionalidades também devem ser abrangidos pela amnistia.
Afinal, Angola somos todos e, por isso, só todos juntos, por amor a nós próprios, conseguiremos ser o país que não somos só por falta de vontade.
Um dia virá em que todos os lugares de Angola serão lugares de toda a Angola. Por causa do milho novo. Sempre com atenção aos tortulhos venenosos.