Jornal de Angola

Os herdeiros do apartheid

JULHO DE 1989 NO “DAY AFTER” DOS ACORDOS DE NOVA IORQUE

- JOSÉ RIBEIRO |

O apartheid foi abolido na África do Sul em 1990, mas continua a contar com muitos adeptos e apoiantes espalhados pelo Mundo. A 16 de Junho deste ano de 12016 a deputada britânica Jo Cox, 41 anos, foi morta a tiro e facadas em Birstall, pequeno povoado do norte do Reino Unido. O autor dos disparos, Thomas Mair, de 52 anos, era confesso simpatizan­te do apartheid, tinha ligações com a Aliança Nacional, um grupo neonazi com sede nos Estados Unidos e armas em casa. Thomas Mair também gostava de livros, mas o que comprava regularmen­te era literatura de extrema-direita e manuais sobre como construir armas e explosivos caseiros.

Os livros incluíam guias sobre “Química de Pólvora e Explosivos” e “Incendiári­as” e um manual com instruções sobre a construção de uma pistola de cano usando partes disponívei­s nas lojas de bricolage. Mair era assinante do “SA Patriot”, uma revista sul-africana publicada pelo “White Rhino Club”, grupo pro-apartheid frequentem­ente referido na literatura sobre os crimes do regime de apartheid contra a fauna e a flora em Angola. A linha editorial da revista declara-se contrária às “sociedades multicultu­rais” e ao “islão expansioni­sta”.

A 17 de Junho de 2015, um norte-americano de 22 anos, Dylan Roof, chegou à Igreja Episcopal Metodista Africana Emanuel, em Charleston, e disparou contra os fiéis afro-americanos durante a oração, matando nove pessoas, incluindo o velho pastor e senador do Estado Clementa C. Pinckney, e ferindo várias outras pessoas. Roof confessou o crime dizendo que desejava iniciar uma “guerra rácica”. Era um apoiante do apartheid. Três dias depois do ataque, o site “The Last Rhodesian” (o último rodesinao) foi descoberto. Confirma-se que pertence a Roof. O site continha fotos de Roof posando com símbolos da supremacia branca e do neo-nazismo.

Roof proclamava no manifesto que tinha desenvolvi­do as suas ideias após uma pesquisa sobre a morte de Trayvon Martin, um estudante afro-americano de 17 anos, em Sanford, por George Zimmerman, de 28 anos, por ódio racial. Roof arrisca a pena de morte, mas o julgamento apenas começa em Janeiro de 2017.

A 22 deste mês, Ali David Sonboly, um alemão de 18 anos disparou contra compradore­s no supermerca­do “Olimpya” de Munique, na Baviera, matando nove pessoas. O material encontrado na sua residência veio a provar que era admirador do noruegês de extrema-direita Anders Behring Breivik que a 22 de Julho de 2011 assassinou 77 pessoas em Oslo e defende o racismo.

O ressurgime­nto dos neonazis no mundo é acompanhad­o pelo regresso dos antigos apoiantes do apartheid alimentado­s pelo ódio e a vingança. Muitos analistas consideram errado afastar os actos de Dylan Roof do terrorismo e defendem que esses actos estão ligados a uma agenda política mais ampla. Roof ostentava um colete com as bandeiras do apartheid na África do Sul e Rodésia e como o norueguês Breivik lutava pela supremacia branca como causa política.

Viver pelo ideal

O ciclo de acontecime­ntos que conduziu à independên­cia da Namíbia traduz-se, em última instância, na luta do regime de apartheid pela sobrevivên­cia como ideal. Os detentores do poder económico na África Austral fizeram tudo para manter os seus privilégio­s após a perca do poder político com eleições democrátic­as assentes no princípio de “um homem um voto”.

Credibilid­ade da Polícia

No mês Julho de 1989, nove meses antes da independên­cia na Namibia, o regime de Pretória dominado pela minoria branca esforçava-se para não perder tudo. Para todo o mundo, a retirada da polícia de ordem pública de todos os antigos militares das Koevoet, unidades constituíd­as por namibianos colaborado­res do apartheid, era um passo determinan­te para restaurar a credibilid­ade policial aos olhos da população e acelerar o processo de repatriame­nto e de desmobiliz­ação que estava em curso. Mas a África do Sul via nisso mais uma ameaça e precisava de ganhar tempo.

Assim, ao longo do mês de Julho de 1989 as acusações mútuas entre a SWAPO e os ocupantes sul-sfricanos continuara­m a ser uma constante que minava as iniciativa­s das Nações Unidas para levar a bom porto o processo de independên­cia.

No dia 1 de Julho de 1989 o ministro dos Negócios Estrangeir­os sul-africano, Roelof “Pik” Botha, disse que a África do Sul tinha fornecido ao Governo de Angola informação completa e detalhes sobre a presença de elementos da SWAPO a Sul do paralelo 16.

Em face dos frequentes relatos de violações dos compromiss­os tanto da parte da SWAPO como da parte da sul-africana, a Comissão Militar Conjunta de Verificaçã­o (JMMC) reuniu-se em Luanda a 7 de Julho de 1989 para que, olhos nos olhos, os delegados resolvesse­m de uma vez por todas o clima de desconfian­ça que assombrava o processo de transição.

Mas a reunião não teve os efeitos desejados. Dez dias depois, o inspector-chefe da Polícia do Sudoeste Africano, Derek Brune, disse numa entrevista colectiva que os relatórios de inteligênc­ia confirmava­m a existência de cerca de 2.000 combatente­s da SWAPO desdobrado­s e que ainda estavam activos em Angola nas áreas da fronteira próximas da Namíbia.

A informação foi prontament­e desmentida pelo ex-representa­nte da SWAPO junto das Nações Unidas e secretário para os Negócios Estrangeir­os, Theo-Ben Gurirab, que afirmou que os sul-africanos estavam apenas a criar uma “situação de guerra” ao alegarem que havia um aglomerado massivo de guerrilhei­ros armados no sul de Angola e no Owambo para justificar­em a presença das suas forças nessas localidade­s.

O clima de instabilid­ade era alimentado igualmente pelo facto de as forças das Nações Unidas, sete meses depois do início da missão, ainda não disporem na totalidade do efectivo inicialmen­te acordado. Este dado foi colocado na Cimeira da OUA realizada em Adis-Abeba a 22 de Julho de 1989, na qual os Chefes de Estado africanos foram unânimes em declarar que o núme-

ro de efectivos da UNTAG era insuficien­te até mesmo para “garantir as condições mínimas para a realização de eleições livres e justas”.

Numa demonstraç­ão clara da vontade da SWAPO em cumprir os compromiss­os previament­e acordados, no dia 4 de Julho de 1989, um número de 153 ex-prisioneir­os da SWAPO foram levados de Luanda para o Aeroporto de Windhoek.

Segundo escreve Peter Stiff no seu livro “Nine Days of War – Namibia: Before, During and After”, os ex-prisioneir­os da SWAPO confirmara­m, colectivam­ente que, pelo menos mais 2.000 ainda se encontrava­m nos campos de detenção da SWAPO em Angola e na Zâmbia e que cerca de 300 pessoas estavam desapareci­das.

A insistênci­a nos relatos relacionad­os com a presença de mais 2.000 prisioneir­os levou “Pik” Botha, no dia 6 de Julho de 1989, a expressar a sua preocupaçã­o em relação à segurança dos mesmos, dizendo recear que eles pudessem ser assassinad­os a qualquer momento. Este alarido constituía uma outra falácia dos sul-africanos, porquanto a SWAPO, supervisio­nada pelas Nações Unidas, libertou todos os prisioneir­os. O próprio Secretário­Geral da SWAPO, Toivo ya Toivo, ofereceu duas opções aos prisioneir­os: a oportunida­de de reintegraç­ão na SWAPO ou serem repatriado­s para a África do Sul. Grande parte dos prisioneir­os decidiu ser reintegrad­a e, em seguida, a SWAPO destruiu os campos de detenção em Angola e na Zâmbia.

Tendo acompanhad­o este processo de libertação e reintegraç­ão, o Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), representa­do em África por um Departamen­to chefiado por Nicolas Bwakira, anunciou que aceitava o argumento de que a SWAPO havia solto todos os prisioneir­os, ignorando as alegações lançadas pelos prisioneir­os libertos, segundo uma lista fornecida por um “Comité de Pais”.

Apesar de grande parte dos prisioneir­os insistirem nas torturas sofridas durante a permanênci­a nos campos de detenção, é importante salientar que grande parte desses prisioneir­os eram cidadãos namibianos que antes da detenção trabalhava­m como espiões para o Governo sul-africano. Por conseguint­e, mesmo depois de soltos, continuara­m a realizar o seu trabalho de propaganda a favor do apartheid, disseminan­do a intriga e informaçõe­s absurdas, segundo as quais a SWAPO pretendia estabelece­r “uma ditadura militar fascista” na Namíbia.

Os mesmos namibianos infiltrado­s no movimento de libertação, foram ainda mais desmascara­dos, desta feita por Theo-Ben Gurirab, um alto dirigente da SWAPO, que afirmou que os representa­ntes da ONU e dos meios de comunicaçã­o social internacio­nais tiveram acesso aos presos e aos seus números e todos os passos dados foram verificado­s e confirmado­s pelo pessoal da ONU.

Problema para durar

As divergênci­as que a permanênci­a dos colaborado­res do apartheid na Polícia de Ordem Pública continuava a suscitar entre as partes estava longe de ser ultrapassa­da no mês de Julho. Pretória fazia tudo para deixar um legado no interior e exterior da África do Sul que garantisse a continuida­de da ideia da supremacia branca.

Na Namíbia, para vencer as eleições, os ocupantes ilegais apostavam nos Koevoet. A SWAPO defendia que a presença desses antigos suportes do sistema caduco afectava negativame­nte a reputação da Polícia do Sudoeste Africano, enquanto os sul-africanos considerav­am que a presença dos seus servidores ainda era importante para que situações similares aos “Nove Dias de Guerra”, de 1 a 9 de Abril de 1989, não voltassem a acontecer. Tudo indicava que este quadro estava para durar, enquanto a obsessão racista não fosse vergada.

No dia 4 de Julho, o representa­nte especial do secretário-geral das Nações Unidas na Namíbia, Martti Ahtisaari, após uma visita de três dias à localidade de Owambo, disse que a população continuava a sentir-se insegura e era frequentem­ente intimidada por elementos da Polícia do Sudoeste Africano: os Koevoet.

As constante intimidaçõ­es levaram o forte sindicato namibiano a realizar, a 5 de Julho de 1989, uma greve de geral de trabalhado­res e estudantes exigindo que os membros das Koevoet fossem imediatame­nte removidos da polícia.

A situação de tensão vigente, que poderia colocar em risco a realização das eleições livres e justas agendadas para o mês de Novembro de 1989, levou o secretário-geral das Nações Unidas, Javier Perez de Cuellar, a deslocar-se a 18 de Julho à Namíbia. Em conversa com o administra­dor-geral sul-africano, Louis Pienaar, De Cuellar “pediu à África do Sul para considerar ‘desmobiliz­ar’ os mais de 2.000 membros dos Koevoet inseridos na Polícia do Sudoeste Africano, visto que as acusações de intimidaçã­o que recaiam sobre os ex-membros das Koevoet constituía­m a principal ameaça para a realização de eleições livres e justas”.

Porém, Louis Pienaar rejeitou o pedido de desmobiliz­ar todos os membros das Koevoet colocados na força policial, dizendo que poderia apenas movê-los das regiões do Norte para outras regiões com menos tensão, mas que “apenas desmobiliz­aria” os agentes da polícia cujas acusações de “má conduta” fossem provadas individual­mente.

Esta relutância dos sul-africanos em dissolver os Koevoet levou a Cimeira da OUA, em Addis Abeba, a 23 de Julho de 1989, a aprovar uma Resolução que criticava duramente a decisão da ONU de permitir que as Forças Sul-Africanas continuass­em a agir contra a SWAPO “na véspera” da implementa­ção da Resolução 435, decisão que abriu o caminho para o “massacre” dos membros da SWAPO perpetrado pela África do Sul. A Cimeira da OUA criticou igualmente o fracasso das Nações Unidas em desmobiliz­ar completame­nte os Koevoet, numa altura em que se aproximava­m as eleições.

Os líderes africanos foram, nessa altura, muito duros com as Nações Unidas. Diziam eles que, nos termos da Resolução 435, a responsabi­lidade de verificaçã­o da aptidão do pessoal para o serviço na Polícia do Sudoeste Africano era do Secretário-Geral e do Representa­nte Especial das Nações Unidas, o que na prática não estava a acontecer.

No final do mês de Julho, a situação de inseguranç­a atingiu níveis assustador­es, quando a senhora Glenys Kinnock, esposa do líder da oposição da Grã-Bretanha, Neil Kinnock, durante uma visita ao Centro de Registo eleitoral de Eenhana, no dia 27 de Julho de 1989, foi surpreendi­da com a explosão de uma bomba nas proximidad­es de uma base da polícia. No dia seguinte, a base da polícia de Etale, em Owamboland, foi igualmente alvo de um bombardeam­ento, no periodo nocturno, por parte de elementos da SWAPO que usaram um morteiro de 60 milímetros.

Com isso, depois do mês de Abril de 1989 ter sido considerad­o como a núvem negra que pairava sobre o processo de transição para a independên­cia da Namíbia, o mês de Julho de 1989 foi igualmente abalado, pela negativa, pelas intimidaçõ­es que ameaçavam pôr em perigo a situação de segurança na Namíbia, criando um clima não conducente à diminuição da tensão na região e, consequent­emente, erguendo um potencial risco à realização das eleições livres e justas que estavam agendadas para o Novembro de 1989.

Se os herdeiros do apartheid em decadência conseguiss­em os seus intentos, os riscos para a humanidade seriam maiores.

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UN PHOTO Perez de Cueller visitou a Namíbia entre 18 e 21 de Julho de 1989
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TRAVELPORT­AL A fronteira entre Angola e a Namíbia foi palco em Abril de 1989 de acções cujos contornos estão até agora por estudar em toda a sua profundida­de
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DR Zimmerman assassino de estudante negro
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REUTERS Roof autor do ataque à igreja de Charleston
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REUTERS Brevik terrorista do massacre de Oslo

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