As virtudes humanas de Malengas
Malengas, meu amigo de meninice e juventude, nome que lhe foi dado pela molenguice que sempre o caracterizou, o nome de registo julgo que ninguém sabia, nem até ele próprio, foi das pessoas mais calmas e honestas que conheci.
Nunca ninguém o viu alterar a voz, nem na alegria, nem na tristeza. Tão-pouco em momentos de concordância ou de sinal contrário, embora neste caso a palavra a empregar deva ser desprezo.
Ao contrário do que desprevenidos possam pensar, não era indiferente ao que se passava à volta dele, à amizade, solidariedade ou amor. Malengas gostava de dançar, era passista de primeira, mas nada de rock and roll ou twist, ritmos que invadiram nossos íntimos e salões de juventude. Gostava de os ouvir, mas dançar não, cansava-o.
Também nunca atravessou a sala para pedir a qualquer donzela ou dama, por mais bonita e torneada que fosse, que lhe servisse de par. Ficava no seu canto ou encostado ao balcão do bar. Quem queria voar nos seus braços e receber aplausos da assistência, tinha de vencer preconceitos rígidos da época.
Com as namoradas passava-se o mesmo. Quem o queria, tinha de lhe dizer. Algumas candidatas mais recatadas escreveram-lhe cartas em Nunca tiveram resposta. Pensa-se que ele nunca escreveu a quem quer que fosse. Nem mesmo enviou o célebre cartão por
sofre, num lado diz sim, no
outro diz não, que Viriato da Cruz imortalizou em poema cantado hoje por artistas de várias nacionalidades, mesmo os que nunca sofreram por amor, nem conheceram o salão de sô Januário.
Malengas, insisto, foi das pessoas mais sinceras que conheci, mas também frontais. Por isso, repetia com frequência que concordava com os ideais de esquerda, mas que não era militante porque “ser de esquerda é muito mais do que dizê-lo, é preciso prová-lo a todo o momento, e isso é tremendamente difícil”. Quanto à direita, considerava “a saída para incapazes, dos que têm o dinheiro como o altar dos deuses”.
Os destinos descruzados da vida encarregaram-se, como aconteceu com tantos companheiros de infância e juventude, de nos levar para atalhos diferentes da vida, mas volta e meia recordo com saudade – eu que não sou dado a saudosismos – o Malengas, principalmente quando oiço e vejo alguns dos elementos mais retrógrados da política e da “esquerda festiva” de Portugal unirem vozes e raivas, com laivos neocoloniais, para falarem de Angola. Todas as oportunidades lhes servem. Das últimas, foi o Congresso do MPLA, há pouco realizado em Luanda, com a presença de representantes de organizações políticas estrangeiras de vários quadrantes ideológicos, numa demonstração, mais uma, de que os angolanos sabem receber quem os visita, seja a que pretexto for. Todos eles falaram daquilo que o partido no poder em Angola por decisão esmagadoramente maioritária dos votantes em eleições democráticas reconhecidas por observadores estrangeiros faz para fortalecer as relações amistosas entre os povos dos dois países e dos respetivos Governos, independentemente das cores das suas bandeiras e que grupos integram no xadrez político internacional.
Os estrangeiros que intervieram no Congresso do MPLA falaram livremente do que vêem e sentem quando visitam Angola: um povo trabalhador, capaz de vencer todos os obstáculos que lhe surjam e percebem que quem venceu o então melhor equipado Exército do nosso continente, o da África do Sul racista, quem reconstruiu em pouco mais de dez anos um país destruído por forças invasoras não sucumbe perante uma crise económica, por maior que ela seja.
Os portugueses que discursaram no Congresso do MPLA disseram o que sentem e o que viram. Contrariaram aos ressabiados do costume, unidos na raiva comum por verem os angolanos, uma vez mais, resistirem a uma crise, sem perderem o sorriso nos lábios que os faz receber bem quem os visita.
Ao ver e ouvir os ressabiados do costume de olhos vidrados e de espuma no canto da boca, recordei-me do meu amigo Malengas, quando dizia que ser de esquerda não é apenas falar.