Hermenêutica jurídica do registo eleitoral oficioso
O registo eleitoral oficioso é o processo através do qual os cidadãos com capacidade eleitoral, ab initio, adquirem a condição para constarem na lista dos cadernos eleitorais que são essenciais para o início do processo eleitoral.
Entre a teoria e a prática, existem duas correntes que, não sendo antagónicas, diferem na abordagem sobre a instituição que deve desenvolver esse processo. Essa controvérsia tem origem na teoria segundo a qual o processo eleitoral começa com o recenseamento eleitoral. A evolução dos sistemas de triagem dos cidadãos com capacidade de voto, que numa grande parte dos países é automática e informatizada, obriga à revisão deste conceito, ou seja, o processo eleitoral não começa com o registo em si, mas com a lista eleitoral.
Esta abordagem, mais pragmática e moderna, permite às instituições que concorrem para a efectivação do processo eleitoral trabalhar em coordenação. O órgão de administração eleitoral independente que administra o processo eleitoral lidera o processo a partir da base de dados actualizada que lhe é fornecida pela instituição que tenha a responsabilidade e capacidade para fazer uma actualização dos cidadãos com capacidade de voto em todo o território nacional de forma sistemática e permanente.
No caso concreto de Angola, o registo eleitoral oficioso será executado pelo Ministério da Administração do Território coadjuvado por Ministérios e órgãos afins. Na acepção dos órgãos afins está a Comissão Eleitoral Nacional (CNE) que irá monitorizar todo o processo porque dentro do registo eleitoral oficioso sairá a lista dos cidadãos maiores de dezoito anos de idade que, por sua vez, dispõem da capacidade de voto, e portanto devem constar dos cadernos eleitorais.
A oficiosidade significa que uma determinada matéria ou informação não sendo oficial tem proveniência oficial. Chegados aqui, quer dizer que a lista que a Comissão Interministerial liderada pelo Ministério da Administração do Território irá entregar à CNE só passará à condição de lista eleitoral depois da avaliação e validação pela própria CNE. Os partidos políticos podem apresentar qualquer tipo de reclamação e solicitar uma cópia dos cadernos eleitorais antes do pleito. O cidadão, por sua vez, também pode e deve verificar se o seu nome e os respectivos dados estão em conformidade, fazendo as correcções que achar necessárias para que possa exercer o seu direito de voto.
No âmbito dos países de língua oficial portuguesa, apenas um optou pelo modelo de criar um órgão específico para a recolha de dados dos cidadãos com capacidade de voto. Tratando-se de uma fase primária de recolha de dados oficiosa, que se transformam em dados oficiais da CNE depois desta os transformar em cadernos eleitorais.
Independentemente do debate que se possa ter relativamente ao conceito de processo eleitoral para aplicar ao nº 1 do artigo 107º da Constituição da República de Angola, sem perder de vista que o nº 2 do mesmo artigo ordena a permanência e obrigatoriedade do registo eleitoral oficioso, nos termos da lei o recurso à análise sistémica e harmoniosa da Constituição é o caminho para a compreensão do actual processo.
As regras básicas da hermenêutica do texto jurídico permitemnos ultrapassar o diferendo que até agora tem servido de cavalo de batalha para os partidos políticos da oposição, contrapondo o nº 1 do artigo 107º que atribui a organização dos processos eleitorais a órgãos de administração eleitorais independentes, por sua vez, definidos por lei, e o nº 2, que obriga ao registo eleitoral oficioso que, pela sua natureza e especificidade, só pode ser realizado por um órgão do executivo. Ainda que o mesmo seja automático, a manutenção e gestão dessa base de dados é sempre feita por um órgão governamental e não por um órgão independente. Portanto, os dados eleitorais são fornecidos aos órgãos eleitorais criados para tal.
Uma das regras da interpretação do texto jurídico que auxilia no esclarecimento desta questão é: “quando a lei não faz distinção, o intérprete não deve fazê-la”. Portanto, se o nº 1 diz que os processos eleitorais devem ser organizados por órgãos eleitorais independentes cuja essência é definida por lei e não limita a colaboração e a complementaridade com órgãos do governo, desde que estes não ponham em causa a independência do seu trabalho, não se deve fazer a separação intramuros entre a antecedência do registo eleitoral oficioso e daí se poder fazer a triagem para as listas eleitorais materializadas em cadernos eleitorais. Assim admitiríamos que o processo eleitoral começa com a existência das listas eleitorais elaboradas pela CNE a partir do registo eleitoral oficioso.
A segunda regra da hermenêutica que se deve recorrer é aquela segundo a qual “prevalece a interpretação que compatibiliza normas aparentemente antagónicas”. Neste sentido, a interpretação não deve levar ao aprofundamento da dúvida, da incompreensão e da inexequibilidade da lei.
Por fim, é necessário recorrer a uma outra regra, segundo a qual “àquele a quem o mais é lícito, o menos não pode deixar de o ser”. Portanto, se com recurso ao nº 2 do artigo 107º da Constituição da República um órgão do executivo pode fazer o registo eleitoral oficioso, em que poderá obter dados mais abrangentes e pormenorizados dos cidadãos do que o simples registo eleitoral que pode ser realizado pela CNE, não é lícito coibir que os dados que sirvam para o início do processo eleitoral não possam ser fornecidos por esse órgão do executivo, salvo se existirem provas que atestam que os dados em causa não sirvam para o processo eleitoral ou que os mesmos não possam ser confirmados e avaliados pelos intervenientes, no caso a CNE, os partidos políticos e coligação de partidos e o próprio cidadão enquanto beneficiário do direito de voto.
Portanto, se os partidos da oposição em Angola estiverem de boa-fé no processo que levará às próximas eleições gerais, devem dar todo o apoio à Comissão Interministerial liderada pelo Ministério da Administração do Território (MAT), mobilizando e sensibilizando todos os cidadãos para aderirem ao processo de recenseamento oficioso de forma massiva. É do interesse do cidadão e de todos os intervenientes no processo eleitoral. A presença de todos será crucial para o sucesso das eleições gerais que se aproximam.