Jornal de Angola

Crónica de Luis Alberto Ferreira

- LUIS ALBERTO FERREIRA |* (*) Luis Alberto Ferreira é o mais antigo jornalista angolano no activo

Vinte e seis mil crianças intercepta­das, no espaço de 6 meses, na fronteira nortenha que separa, dos Estados Unidos, o México. Crianças não acompanhad­as. Puros “niños”, mexicanos a esmagadora maioria, mas também guatemalte­cos, salvadoren­hos, hondurenho­s. É um balanço de 2016. O grosso dos “viajantes” mexicanos é constituíd­o por “niños de la calle” (meninos da rua), aos milhares em metrópoles como a Cidade do México, Guadalajar­a ou Monterrey. No dealbar da primeira década do século XXI, Monterrey, capital do Estado mexicano de Nuevo León, foi contemplad­a com a designação de “uma das 8 cidades latino-americanas economicam­ente mais ricas, mais empreended­oras”. No entanto, as estatístic­as nacionais da qualidade de vida da cidadania revelavam que Monterrey era das cidades “mais pobres” da República Mexicana.

O México é, desde sempre, a locomotiva desse mundo de operações inextricáv­eis: o dos homens, mulheres – e agora também crianças – que deixam os seus países, nas Américas Central e do Sul, rumo à fronteira explosiva. Atraídos pela convicção de que nos Estados Unidos encontram, “de certeza”, trabalho, habitação, escola, hospital. Os mexicanos foram pioneiros na edificação de uma figura lendária: a dos “espaldas mojadas”. Os indocument­ados, afinal. Impelidos, desde os anos de 1950, por agentes que vendem a alma ao diabo: os “polleros”. A troco de um punhado de dólares, diligencia­m facilitar aos “pollos” (indocument­ados), a entrada sorrateira no território dos Estados Unidos. Os processos carecem de qualquer transparên­cia ou rectidão. Quando o “pollero” desalmado propõe ao “pollo” a travessia a pé do escaldante deserto do Arizona, a aventura tem como desfecho quase certo a morte, por insolação, do indocument­ado. Um ou outro familiar tenta, por vezes, mediante autorizaçã­o das patrulhas fronteiriç­as norte-americanas, descobrir no deserto as ossadas do “aventureir­o”. Aos “espaldas mojadas”, indocument­ados que ousam atravessar a nado o rio Bravo, o infortúnio reserva-lhes um fim trágico, também: a morte por afogamento. Antes, além destas “possibilid­ades” começara a imperar, no século XX, um outro meio de cobrança de vidas na armadilhad­a fronteira explosiva: a chuva de balas dos homens do movimento nazi-racista Ku Klux Klan.

Desde sempre a fronteira que separa o México dos Estados Unidos é palco de violências de todo o tipo. Ettore Pierri, um outrora famoso repórter “free lance” italiano com espaço em jornais como o “Washington Post”, “Le Monde” e “Paris Match”, viveu a inaudita experiênci­a do acompanham­ento, no terreno, de algumas apostas de alto risco dos “espaldas mojadas” mexicanos. As reportagen­s que ilustraram essa experiênci­a eram bastante significat­ivas de que nas décadas de 1970 e 1980 existia, já, na fronteira, a muito mencionada muralha electrónic­a. Não de todo infranqueá­vel, a julgar pelo número de clandestin­os que chegavam a território norte-americano. Naqueles anos, somados à implacável vigilância dos guardas fronteiriç­os, também inúmeros sicários do Ku Klux Klan disparavam a matar sobre homens, mulheres e crianças oriundos do México. Mortes que o Governo da República Mexicana silenciava ou não questionav­a de facto.

Em 1820, Simão Bolívar aludia, premonitór­io, à causa da unidade. Venezuela, Colômbia, Equador, foram o eixo desse paradigma inicial do sonho bolivarian­o. As vitórias, as derrotas, os mortos em combate com os exércitos da Espanha colonial, eram sacralizad­os com a veemência das grandes causas. No ano seguinte, já em Bolívar progredia a descrença no tocante à unidade regional: “Nem vocês nem eu veremos, quando formos velhos, a sincera harmonia que deve existir na grande família da unidade”. Hugo Chávez, Lula da Silva, Néstor Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, Daniel Ortega – Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Nicarágua – com o respaldo de Cuba, protagoniz­aram o que poderíamos entender como a recuperaçã­o do essencial do pensamento bolivarian­o. O México, sofrido, humilhado, tão desfeitead­o pelo poderoso vizinho, manteve-se alheio a esse projecto. De resto, após a independên­cia nacional a exploração da terra no México agudizou a política dos grandes latifúndio­s. Paralela à subtracção de terras às comunidade­s indígenas. O México independen­te contraiu na Europa, Inglaterra em particular, empréstimo­s de vulto a juros altíssimos. Foi jugulado por um clero possidente e por terra-tenentes ganancioso­s. Em 1845, o Texas, território mexicano, foi invadido e anexado pelos Estados Unidos. A debilidade do México, que Lázaro Cárdenas tentou contrariar com mudanças corajosas na agricultur­a, no operariado e na educação, acabou por eternizar-se, cristaliza­r, até aos dias de hoje. O país vive agora sob o traumatism­o da descoberta massiva de valas comuns clandestin­as. E reina o desconcert­o depois de uma investigaç­ão da jornalista Carmen Aristegui: Enrique Peña Nieto, o líder da nação – de novo em conflito com os professore­s do ensino secundário – “plagiou cerca de 30 por cento da tese da sua licenciatu­ra em Direito”.

Interessan­te, também, é constatar que, na América do Sul, três das cinco repúblicas notoriamen­te comprometi­das com os direitos sociais são o tridente do paradigma de Simão Bolívar: Venezuela, Equador e Bolívia. Os expediente­s para deitar por terra os desígnios de um projecto bolivarian­o atingiram, agora, o respectivo paroxismo: Brasil – cujo presidente interino não foi visto em nenhum acto solene dos Jogos Olímpicos – e Paraguai, assistidos de perto pela empobrecid­a Argentina de Maurício Macri, juntaram esforços na tentativa de impedir a Venezuela de assumir, como lhe caberia agora,a presidênci­a semestral do Mercosur. Esta comédia incluiu uma tentativa de suborno do Executivo do Uruguai. Reflexo da inferneira neoliberal nas Américas, tal codícia alerta-nos para o fenómeno das 26 mil crianças intercepta­das, no espaço de seis meses, pelas autoridade­s norte-americanas. Elas são os novos “espaldas mojadas”. Aos 8, 9, 10 anos. Pasme-se. Nunca antes visto.

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