Crónica de Luis Alberto Ferreira
A República andina da Bolívia transformou-se de forma radical a partir de uma novidade estremecedora: um puro nativo, Juan Evo MoralesAyma, na Presidência. “Novidade estremecedora” para os bolivianos até ali preponderantes, os imarcescíveis descendentes directos da “Conquista”. E também para os interesses do vasto e ardiloso planeta das multinacionais. A “inaudita contrariedade” iria, entretanto, agudizar-se. Com Evo Morales, eleito em 2005 e reeleito em 2009, a República da Bolívia formulava um novo olhar sobre os direitos das populações nativas, a filosofia do combate ao analfabetismo, as políticas de protecção do ambiente, a defesa e exploração dos recursos naturais. O novo Presidenteboliviano optou, como se esperaria, por uma estreita cooperação com os governos das vizinhas repúblicas sul-americanas mais identificados com a sua visão do mundo e dos homens. Esse o quadro dinâmico que viria a contemplar na Bolíviaa nacionalização dos hidrocarbonetos e da indústria mineira em geral. Evo Morales agia em consonância com os valores por ele postulados quando inseriu, no país andino, o núcleo de fundadores do IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos). Foi eleito e reeleito Presidente da Bolívia com ampla vantagem, nos escrutínios, sobre os concorrentes portadores de outras bandeiras ideológicas – ou conservadores de mentalidade neocolonial e propícia às incursões dos interesses estrangeiros. Essa mentalidade vinha seduzindo, nos últimos tempos, os “ideólogos” da chamada Federação de Cooperativistas Mineiros da Bolívia. Portanto, trabalhadores das minasaglutinados de acordo com o espírito próprio das cooperativas. Tudo pareceu lícito e confiável até ao momento em que os “cooperativistas”, querendo impor novas regras – à margem da soberania do Estado boliviano – acharam “vantajosa” a “participação” de empresas privadas nacionais e internacionais na exploração da riqueza mineira do país. Incitados, segundo o Presidente EvoMorales, por grupos da oposição conservadora com ligações ao exterior. A breve trecho, os mineiros, contrariados na sua esperteza “inovadora”, passavam à insubordinação geral: bloqueio de estradas, apedrejamento de polícias, abandono das funções laborais. O Governo de Evo Morales destacou, por fim, o seu vice-ministro do Interior, Rodolfo Llanes, para uma missão que lhe seria fatal: ir até junto dos mineiros revoltosos e propor-lhes, uma vez mais, a via dialogal. A iniciativa iria ter um desfecho horroroso: os mineiros, entrincheirados, amordaçaram e torturaram o governante. Espancaram-no. Por fim, rebentaramlhe o crânio à pedrada. Um magnicídio eivado da mais repugnante selvajaria. Toda a Cordilheira estremeceu.
A primeira das tentações que me assaltam é a da rememoração dos muitos episódios humilhantes e repressivos vividos, em tempos de ditadura militar, pelos mineiros da Bolívia. A maior parte originária de um mundo rural de pobreza e atraso: o laboratório social que traiu Ernesto Che Guevara. Coincidem– fácil de entender –os actuais Presidentes da Bolívia, do Equador e da Venezuela, na interpretação política deste magnicídio. Rafael Correa, Presidente da República do Equador, é muito eficaz na sua formulação: “Já lá vai o tempo em que nos davam ordens pelo telefone”. Contudo, os três estadistas sul-americanos poderiam, sobretudo, parafrasear Manuel Vásquez Montalbán, o combativo e inolvidável jornalista da Catalunha: “Podemos ver parte da verdade e não reconhecê-la, mas é impossível contemplar o mal e não reconhecê-lo”. Bernie Sanders, que não será candidato à Presidência norte-americana, já deu mostras de que ele, sim, “reconhece o mal”: é o único político do “Ocidente” que aponta o dedo aos “acontecimentos no Brasil”. É certo que nada mudará – uma nova “Operação Cóndor” parece estar em marcha na América do Sul. O que é que mudou quando Jorge Luís Borges deu a conhecer que o Mississipi descarrega, anualmente, no Golfo do México, 400 milhões de toneladas de lodo? Entrementes, uma pulsão do “realismo radical”: a Bolívia de Evo Morales dir-se-ia uma experiência revolucionária afectada por alguma “ingenuidade”. Ele próprio conclui agora, só agora, que a Federação Mineira de Cooperativas da Bolívia “é uma organização criminosa que conspira sob a égide de interesses internos e externos”. Dir-se-ia que, no seu afã de moderador, para chegar a essa desde há muito óbvia conclusão o Presidente Morales “precisou” do medonho sacrifício do seu vice-ministro do Interior. Sob a pressão do “invisível”, o boliviano Morales vê agigantar-se um dilema transcendente: moderação ou punho de ferro? Os mineiros poderiam ser, deveriam ser o porta-voz dos intentos de moderação do seu Presidente. Preferem, todavia, ser o cavalo troiano do inimigo arquipotente. Em Agosto de 1971, o temível coronel Hugo Banzer encabeça um golpe de Estado militar e derruba o governo do seu colega de armas Juan José Torres. As primeiras vítimas mortais da ditadura de Banzer foram os mineiros, cujos líderes sindicais perderam a vida em acções reivindicativas. Desta feita, antes de concluídos dois decénios do século XXI, vemos os mineiros da Bolívia num processo grosseiro de manipulação conspirativa do “cooperativismo”: a admissão, na sua estrutura, de empresários do país recrutados por algumas multinacionais. Também desconcertante: o contraste absurdo entre o que teriam feito ditadores como Barrientos, Banzer ou Meza– mobilização de tropas e artilharia –e o que fez Evo Morales ao enviar o seu indefeso vice-ministro do Interior para “conversações” com bandos de mineirosentrincheirados. Gente irracional e cobarde: a maioria pôs-se em fuga quando, em zona montanhosa, polícias e militares procederam ao resgate do corpo dilacerado de Rodolfo Llanes. No local, apurou-se que os mineiros –cooptados sob a cortina de fumo do “cooperativismo” – possuíam ali um potentíssimo arsenal de armas e explosivos. “O seu negócio é vulgar”, diria Borges. “Como o seu momentâneo luxo de anéis”...