Jornal de Angola

Novos hábitos novos costumes

- BELARMINO VAN-DÚNEM |

Vamos colocar óleo de carro e assim ninguém se senta mais aqui ou, pelo contrário, sai daqui com a roupa toda manchada. Mas se comprarmos um cão, servirá para as duas coisas, impedir que continuem a sentar-se aqui e afugentar possíveis larápios que fazem da madrugada o horário de trabalho.

A primeira solução é muito arriscada, porque qualquer um de nós pode correr o risco de se sentar aí na porta de casa. Desde que o muro ficou mais alto, eu não consigo estar ao corrente das novidades da rua – argumentou a dona da casa.

Acho errado esses hábitos pouco citadinos que estamos a ganhar. Se construímo­s o muro com essa altura é para termos alguma privacidad­e e nos protegermo­s dos ladrões – retorquiu o chefe da família.

Na verdade, é um hábito recorrente as famílias reunirem-se fora do quintal ao fim da tarde. Ali se mantêm até altas horas da noite. As paredes dos quintais são autênticas muralhas e para que a pessoa possa estar ao corrente das novidades da rua é necessário abdicar da privacidad­e do quintal.

O que deixa ainda mais perplexo é que o hábito de limpar todo o espaço que circunda o quintal também deixou de fazer parte do costume. Sendo assim, as pessoas ficam expostas ao lixo, mosquitos e ao cheiro nauseabund­o enquanto descontrae­m em grandes cavaqueira­s, saboreando pinchos, cabrité e outras iguarias que se tornaram habituais nas periferias, claro que fazendo-se acompanhar da cerveja ou de outra bebida espirituos­a.

Não importa o dia da semana, há sempre um aglomerado de pessoas a beber e a fazer uso dos petiscos. As novidades musicais também podem ser ouvidas aí, com som de alta qualidade, tendo em atenção o tamanho das colunas usadas. A poluição sonora também faz parte integrante do ambiente que se vive. Nestes ambientes fala-se de tudo um pouco, da economia, passando pela política e até dos divórcios, traições e novos pedidos que estejam agendados no bairro.

Por esta razão, faz todo o sentido repensar a estratégia de pôr óleo em frente da porta de casa. Seria também impediment­o para as pessoas de casa acompanhar­em toda a dinâmica do exterior.

A decisão mais razoável é mesmo arranjar um cão. Desses que não dão trabalho, que comem os restos da comida das refeições e que aceitem dormir na rua. Hoje as pessoas é que guardam os cães e têm o dever de lhes dar um certo número de mordomias que não estão à altura de qualquer bolso: a comida é específica e cara; é necessário prover o cão de casa própria; deve ter todas as consultas em dia, para além da documentaç­ão de identifica­ção. Isto é muito trabalhoso. Por isso, tem de ser um cão que morda os desconheci­dos e não exija muito.

Assim ficou a decisão: comprar ou arranjar um cão.

Foi assim que passou a fazer parte da família um cão de raça cruzada, chamado “Corajoso”. Fazia a vistoria da parte exterior da casa durante o dia, com ar pachorrent­o, ora sentado, ora deitado no passeio junto do portão da casa, e à noite deixava-se descansar no quintal.

Numa bela tarde, quando o sol já desaparece­ra no horizonte e o céu nublado dava indícios de chuva para a noite, o “Corajoso” parecia menos amistoso do que antes. Latia sempre que visse um transeunte, o que levava as pessoas a afastarem-se da casa. Mas, como também já se criou o hábito de não fugir dos carros, dos cães ou de outro perigo qualquer, nesse dia ouviu-se um alvoroço na rua. Pela primeira vez, o “Corajoso” tinha cumprido com o propósito da sua presença na casa: morder quem se mantivesse em frente do portão e não pertencess­e à família. A vítima expressava-se mal em Português e aparentava ser estrangeir­o:

– Eu não sei se esse cachorro está vacinado, nem sei porquê que me mordeu se eu só estava aqui parado à espera de alguém! – argumentou a vítima perante o fiscal do bairro, que se fazia acompanhar de dois polícias devidament­e identifica­dos. O chefe da família questionou: – Mas o senhor parou aqui porquê, com tanto espaço ali? E o senhor está aqui em Angola a fazer o quê? Nós não temos o hábito de parar em frente da casa de pessoas desconheci­das. Portanto, o “Corajoso” só fez o que devia fazer.

– Oh camarada, também não é assim, a rua é pública - retorquiu o fiscal.

– Está bem, mas tenho o direito a três metros, para além do meu quintal, ou não?

– Não sei disso, mas o seu cão será detido para averiguaçõ­es. O senhor vai buscá-lo depois de apresentar os documentos e o cartão de vacinas.

– Não me diga? Então, esse aqui, não sei de onde é, fica parado no meu portão e o cão vai preso? Qual é o dever de um cão senão morder estranhos? A vítima decidiu justificar-se: – Eu estou aqui em Angola porque só espero que o meu país esteja livre e não quero problemas.

A resposta não se fez esperar da parte do chefe da família:

– Pois, você quer o seu país livre, mas criar condições para a prisão do “Corajoso”, isso não está correcto. É assim que a vítima responde: – Eu sou corajoso, mas não estou a lutar pela liberdade do meu país porque tenho jeito para o comércio.

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