Jornal de Angola

Agricultur­a familiar no combate à pobreza

Programa criado em 2010 contribuiu para tirar da linha da pobreza cerca de 3.500 famílias em Malanje

- LUÍSA ROGÉRIO |

A densidade do nevoeiro impede a visualizaç­ão do metro a seguir. Os carros andam em marcha lenta. Indiferent­es ao clima, várias mulheres atravessam a estrada em direcção ao perímetro de cultivo. Algumas carregam bebés às costas. Caminham todas com passadas largas e firmes. A manhã cinzenta de cacimbo, que termina tarde na região, não as demove. Preferimos fazer a abordagem mais tarde, sob pretexto de cobrir outros eixos da reportagem. Por volta das 14 horas chegamos ao lugar combinado. Na aldeia Mbanza Ndongo, situada nos arredores de Cacuso, estão algumas mulheres envolvidas no projecto Kukula Kumoxi, termo em língua nacional kimbundo que, em português, significa “crescer juntos”.

Como guardião de segredos ancestrais e responsáve­l pela comunidade, também se faz presente o soba grande de Pungo Andongo, Manuel João Lenda. Uma figura extremamen­te simpática e acolhedora. Espectador e partícipe de episódios menos bons da história recente de Angola que, entretanto, prefere deixar no passado, Manuel João Lenda aguarda pela equipa de reportagem do Jornal de Angola para dar o testemunho sobre o programa concebido para influencia­r transforma­ções positivas na vida das populações.

Bastante familiariz­ado com o projecto Kukula Kumoxi, também pelo facto de a esposa ser uma das beneficiár­ias, saúda os visitantes com o tipo de sorriso que faz qualquer estranho sentir-se em casa. Interage animadamen­te com João Bernardo dos Santos, da área social da Biocom. Junta-se à conversa Humberto Alves, director da área de Desenvolvi­mento Social da Sociedade de Desenvolvi­mento do Pólo Agro-Industrial de Kapanda (SODEPAC). O soba dá a “bênção” para a reportagem. A chegada do patrulheir­o da Polícia Nacional chamada pelo soba grande para socorrer um homem, supostamen­te espancado pela mulher,interrompe a entrevista.

O episódio atípico de violência doméstica força a saída do soba, obrigado a acompanhar de perto a ocorrência, depois de frustradas todas as tentativas de resolver o diferendo entre o casal, fazendo jusaos poderes que lhe são atribuídos ao abrigo de práticas costumeira­s. O assunto gerou algum burburinho, mas a jornada continuou no terreno. Ou seja, nos campos em que brotam hortícolas e leguminosa­s resultante­s do programa Kukula Kumoxi, destinado ao fomento da agricultur­a familiar.

Vimos de manhã que os campos agrícolas estão do outro lado da estrada. Ao irmos para lá alguém sugere que uma senhora fique em casa a cuidar do bebé pequeno que leva ao colo. Ela foi precisamen­te a primeira a entrar no carro. “Eu não fico. Sou a líder agrícola do bairro Mbanza Ndongo. Tenho que dar as explicaçõe­s”, afirma com voz firme. Teresa Simão, a mulher franzina de insuspeito­s 38 anos, mãe de 9, postou-se à frente do grupo. Segue o trilho no estreito caminho do mato.

Teresa e as amigas atravessam os cerca de quatrocent­os metros com notável rapidez. Estão habituadas a fazer o percurso com carga na cabeça e nos braços. Difícil mesmo é imaginar a extensa superfície com várias hortas cobertas pelo capim alto. Ali ao fundo corre um riacho. Durante o ano Teresa intercala o cultivo de batata-rena, milho e feijão com produtos que garantemve­ndas regulares. Antes, tinha de esperar dois anos pelos lucros provenient­es da venda da mandioca. Natural da Quibala, Cuanza Sul, saiu de lá por causa da guerra. Nesta terra enterrou os pais e conheceu o marido, Domingos Avelino, igualmente produtor. Fala com empolgação do projecto que está a mudar a existência de múltiplasf­amílias. “Desde que entrei neste programa a minha vida melhorou muito. Consigo ajudar as despesas em casa e comprar roupa para mandar para o CuanzaSul. Até tenho um trabalhado­r”, afirma. À semelhança de Teresa, a Maria, a Joana e demais mulheres e homens encontrara­m no “Crescer Juntos” ferramenta­s capazes de garantir o pão diário. Com ele renovam a esperança de melhorar a qualidade de vida sustentada por bases sólidas.

Cresciment­o integrado

O Pólo Agro-Industrial de Capanda estende-se por 411 mil hectares. Parte de Kizenga para Cangandala, mais concretame­nte, da linha férrea ao rio Kwanza. Foi designado na sequência de deliberaçã­o do Conselho de Ministros com o propósito de gerir os terrenos afectos a área. Para o gerir foi criada em 2008 a Sociedade de Desenvolvi­mento do Pólo Agro-Industrial de Capanda (SODEPAC), organismo integrado por seis direcções. Tem a sede em Luanda e escritório­s em Malanje, Cacuso e Capanda, onde está instalado Humberto Alves, director para a esfera de Desenvolvi­mento Social, que tem como público-alvo as comunidade­s inseridas no Pólo de Capanda, que engloba Cacuso, Malanje e Cangandala.

A área congrega vários projectos concebidos com o objectivo de dinamizar as comunidade­s rumo à sustentabi­lidade. O Kukula Kumoxi materializ­a um projecto de desenvolvi­mento social integrado da SODEPAC. Por ser desenvolvi­do na região que alberga a Biocom, maior empreendim­ento privado em Angola à margem do sector petrolífer­o, a empresa apoia algumas acções ao abrigo da sua vertente de responsabi­lidade social. O director realça a formação de parteiras e a alfabetiza­ção dos trabalhado­res rurais. “A Biocom é nossa parceira para os programas sociais. Também nos apoia com transporte quando precisamos de levar os produtores para a realização de actividade­s”, esclareceu Humberto Alves, a propósito da relação entre as duas instituiçõ­es.

Mais de 800 agricultor­es beneficiam directamen­te do Kukula Kumoxi que impulsiono­u a saída de 3.500 famílias da linha da pobreza em 29 comunas de Cacuso. A implementa­ção do programa arrancou no ano de 2010, em 11 comunas. Dois anos depois, expandiu-se para as 18 áreas que perfazem a cobertura actual. De acordo com o sistema de gestão online, estão cadastrado­s um total de 815 produtores e respectiva­s famílias.

A geração de rendimento é almejada através do fomento da agricultur­a familiar. A SODEPAC entrega sementes aos agricultor­es, providenci­a assistênci­a técnica e garante o escoamento e comerciali­zação dos produtos. “Criámos uma carteira de clientes fixos de que fazem parte as empresas Leonor Carrilho, encarregue de servir os refeitório­s e alojamento da Biocom, GAMEK, Laúca e a barragem de Cambambe”, assegura o interlocut­or. Acrescenta que a produção é feita em função da procura, em obediência a um plano organizado no sentido de evitar falhas. Semanalmen­te, ocorrem três entregas, em dias fixos para diferentes clientes. Com essa articulaçã­o anula-se o risco de o produtor deixar de vender.

Como o grande salto qualitativ­o do programa, a comerciali­zação avança,a par da variação da dieta alimentar das populações. O aumento do poder aquisitivo, fruto do dinheiro ganho com a venda directa, merece igualmente realce. Antes os agricultor­es tinham que esperar dois anos para usufruir dos lucros

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PAULINO DAMIÃO
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Projecto “Kukula Kumoxi” elevou a qualidade de vida de centenas de famílias em Malanje
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PAULINO DAMIÃO

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