“Paz” na Colômbia com 14 esquadrões da morte à solta
Um movimento guerrilheiro não tem qualquer legitimidade quando, no país em causa, prevalece um Parlamento representativo de várias tendências e um Governo resultante do escrutínio popular e alheio a quaisquer “ajudas” cúmplices do exterior. O Parlamento e os Governos da República da Colômbia ao longo dos últimos 52 anos não responderam nunca às primícias que, do ponto de vista ético e institucional, amordaçassem as razões dos grupos guerrilheiros. Que se verifiquem no exterior, Espanha e Portugal, por exemplo, distorções dessa realidade, não me surpreende. Um decadente jornal que se publica em Lisboa “noticiava”, na segunda-feira, a propósito do conflito armado na Colômbia: “Vítimas: a guerrilha das FARC é considerada responsável pela morte e sequestro de 16.862 pessoas. O outro grupo de guerrilha no país, o ELN, é responsável por mais de nove mil mortos”. Cometimentos registados, pois, no espaço de 52 anos. Sem ter saído da paróquia, muito menos do país, o jornalista permitiu-se, até, assinar a “notícia”, como se de um enviado à Colômbia se tratasse.
A “paz” que tem vindo a ser negociada na Colômbia – com a contribuição de Cuba – interessa ao mundo. Pela pior das razões: a sistemática e intencional distorção da história dos 52 anos de conflito entre o Governo sediado em Bogotá e os vários grupos de guerrilha. Distorção que compromete quaisquer iniciativas ou reflexões de carácter pedagógico – dentro e fora da América do Sul. As contradições e os oportunismos, como o leitor verá, começam a ser tremendos.
Em dias recentes, a coincidir com as negociações de paz a decorrer em Havana, o Presidente colombiano Juan Manuel Santos deslocou-se à Venezuela para, com o seu homólogo e vizinho Nicolás Maduro, analisar a situação confusa reinante na fronteira comum(2.500 kms). Juan Manuel Santos é na realidade um dos eternos oligarcas de origem hispânica na Presidência da Colômbia, mas percebe-se nele um homem cativante no gesto e no discurso. E a ele se devem as actuais diligências para pacificar a nação. Em solo venezuelano, Juan Manuel Santos não fez senão um reconhecimento pleníssimo do Governo de Maduro. No entanto, o grupo espanhol PRISA, que usa o seu diário “El País” como meio de ingerência e hostilização obsessionante do Executivo de Caracas, afoitou-se agora na urdidura de nova intromissão regional: juntou-se a uma artificial Fundação “Bom Governo” e a duas rádios colombianas para promover, em Bogotá, um “debate” sobre “um futuro em paz” na Colômbia. (Singularidade: a Espanha encontra-se, desde Dezembro de 2015, sem um Governo “de facto”, é grande o sobressalto nacional e ninguém arrisca qual possa ser “um futuro em paz” no país que Franco estigmatizou). Retomando a tese dos franco-atiradores ibéricos sobre os causadores das baixas humanas na Colômbia: o cenário vendido pelos pasquins da desinformação é revelador de ignorância, amadorismo e irresponsabilidade. Tentar influenciar, a partir de Madrid, os rumos da “paz na Colômbia”, é uma maquinação de igual modo absurda e deplorável.
Deixando, por agora, o historial das FARC, uma guerrilha nada impoluta ou inocente (motivações à parte), vejamos o percurso da UP (União Patriótica), que é um partido político de esquerda medroso e introvertido. A movência da UP, em solo pátrio, é o mais conseguido retrato da cultura do medo na Colômbia. A União Patriótica nasceu em 1985. Deu-se a conhecer por meio de “uma proposta política legal” congeminada por vários grupos guerrilheiros. A “ideia” continha partículas da ideologia das FARC, por exemplo. Este quadro viria, contudo, a alterar-se: o conselho directivo da União Patriótica (UP) marcou distâncias com as guerrilhas, com o radicalismo destas, e abraçou, na companhia, já, do Partido Comunista Colombiano (PCC), a via da ortodoxia parlamentar. Tudo isto sob o arco temporal associado, pela perversidade dos pasquins ibéricos, à falaciosa versão estatística das vítimas exclusivamente atribuídas às FARC e ao ELN. Quando, em 1986-1987, a União Patriótica começava a ganhar espaço político e aceitação popular, eclodiu sobre o partido uma vaga infernal de assassinatos. A selvajaria, de cunho sistemático, decepou pela raiz a UP: dois candidatos presidenciais – os advogados Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa –8 senadores, 13 deputados, 70 quadros organizativos, 11 autarcas e cerca de 4 mil militantes. Carnificina desencadeada por grupos paramilitares, elementos do Exército e da Segurança do Estado, polícias secreta e regular, e narcotraficantes.
Os dois partidos políticos que há bem mais de 52 anos governam a Colômbia mantêm acantonados na pobreza e no analfabetismo os ameríndios, os negros, os camponeses, os operários. Hoje, ao líder colombiano Juan Manuel Santos é atribuível o grande mérito de enfrentar as correntes mobilizadas pelo fascista Álvaro Uribe, anterior Presidente, cujo objectivo é impedir a assinatura dos acordos de paz. Enquanto o actual Presidente exaltava a paz e conversava com os milionários espanhóis do grupo PRISA, três activistas da União Patriótica perderam a vida às mãos dos sicários que abastecem os 14 núcleos de esquadrões ainda à solta na Colômbia. O Presidente a dizer que “o povo não entenderia os que querem deter a História”– e os esquadrões da morte abatendo a tiro Cecília Coicué, agricultora e membro da Federação Nacional Agrária, e Nestor Martínez, activista dos direitos humanos.
Mais: Socorro Piso, uma activista do mundo rural, contou aos jornalistas que, desde o dia da conclusão dos acordos de paz em Havana até ao último fim-de-semana, 49 camponeses foram também assassinados pelos paramilitares. “A guerra”, comentou a activista, “é um bom negócio, e os camponeses um estorvo”. O Pentágono, afirma o insuspeito Carlos Fazio, “leva anos a profissionalizar o Exército colombiano”. Pelo meio, alguns luxos. Helicópteros UH-1 Huey. Aviões Hércules C-130. Uma centena de “boinas verdes” no terreno “capacitam” homens dedicados à arte vagabunda de matar. “Tenho treinado a matar búfalos”, gabavase o xerife Garrett.