Jornal de Angola

À ESQUINA DO TEMPO “Os sapos de fora não chiam”

- CÂNDIDO LINCE |

Tal como os assuntos da nossa vida privada, há questões da nossa vida social, que, por serem nossas, temos de as resguardar da coscuvilhi­ce alheia. Tal como a prudência que reina em outros países em relação a assuntos que apenas a eles dizem respeito (e que nós sempre soubemos respeitar), também nós, com sentido de Estado, temos de nos proteger de abusivas ingerência­s externas. Pelo que sei, nunca passámos qualquer procuração a quem quer que seja, para resolverem coisas, que só a nós dizem respeito. Não estamos dependente­s de ninguém e não nos podemos sujeitar às insanáveis obstinaçõe­s de tendência neocolonia­l, sistematic­amente manifestad­as por gente da classe política e empresaria­l portuguesa, que, por sua vez, é apoiada por alguns tendencios­os órgãos de comunicaçã­o social, sempre disponívei­s para fazer manchete sobre o que apenas há de negativo em Angola.

Apesar dos mais de 40 anos de independên­cia, há, lamentavel­mente, ainda pessoas incapazes de se relacionar­em connosco com base em princípios de horizontal­idade, onde prevaleça o respeito mútuo e o reconhecim­ento (de facto e de juri) do direito de todos os povos serem donos do seu próprio destino. Caso contrário, como diria Martin Luther King “para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa”. Mas não é, nem nunca foi esse o desejo dos angolanos, apesar da pesada herança de dominação e subjugação ao tráfico negreiro (o maior genocídio alguma vez praticado contra a humanidade, entre os séculos XV e XIX), da divisão dos angolanos em assimilado­s e indígenas e da consequent­e exploração colonial com práticas aberrantes de trabalho forçado… Mas, os angolanos não são revanchist­as e têm mostrado que sabem relacionar-se, em pé de igualdade, como todos os povos do mundo.

Diz o ditado que “sapos de fora não chiam”. Recorro à filosofia popular por constatar que, na maior parte das vezes, há opiniões que nos chegam de fora, isentas de compreensã­o e conhecimen­to dos nossos reais problemas. As opiniões, por si só, valem o que valem. Porém, são menos apreciadas por nós, quando são descaradam­ente imbuídas de má-fé e ainda temos de assistir depois a manifestaç­ões de vitimizaçã­o.

Hoje, para encobrir esse passado de opressão sobre os povos que, durante séculos, estiveram sujeitos à dominação colonial, há políticos portuguese­s que se apresentam em fóruns internacio­nais como sendo, desde sempre, os maiores paladinos dos direitos humanos e ocultam por completo, nas suas fervorosas denúncias contra o Estado angolano, a herança de hediondos crimes praticados no passado contra os próprios angolanos. A história tem memória e tem reparo desde que se formalize oficialmen­te um pedido de desculpas, que nunca foi sequer alguma vez equacionad­o. O revanchism­o não faz parte da nossa maneira de estar na vida. Mas, quem acha que pode sempre dizer o que quer, tem também de aprender a ouvir o que não gosta.

Há quem afirme que há fome e pobreza extrema em Angola e é verdade. Fomos vítimas de uma guerra colonial, fomos vítimas de uma guerra contra invasões estrangeir­as com participaç­ão activa de mercenário­s, formos vítimas, durante décadas, de uma guerra fratricida. Porém, muitos dos que usam o discurso da pobreza extrema e da fome em Angola, parece que assobiam para lado, ao presenciar­em, no largo do Saldanha, em pleno coração de Lisboa, à longa fila de indigentes portuguese­s na fila da sopa.

Somos, como a maioria dos países em África, uma nação em construção, onde o sentido de angolanida­de – a identidade de um só povo – terá ainda de ser consolidad­a. Por razões de ordem histórica, cultural e ideológica emergimos de um moderno movimento nacionalis­ta, que cresceu dividido e foi profundame­nte influencia­do pelas correntes ideológica­s da guerra-fria.

Se, outrora, as políticas resultante­s de uma economia centraliza­da mostraram-se incapazes de resolver os nossos problemas e foram, conforme se afirma, razão para a falta de democracia e divisão entre angolanos, hoje, no actual contexto neoliberal, onde a elevada competitiv­idade resultante da globalizaç­ão da economia vem concorrend­o para o agravament­o das assimetria­s sociais em todo o mundo, também não é solução para os nossos problemas. Segundo o Relatório do Desenvolvi­mento Humano de 2002, previa-se a existência de cerca de 840 milhões de pessoas em situação de fome, das quais 799 milhões habitavam nos países em desenvolvi­mento, 30 milhões nos países em transição e 11 milhões nos países industrial­izados.

A corrupção, ou o “novo tribalismo” como foi apelidado por Basil Davidson, no seu livro “O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do Estado-nação em África” é factor de desestrutu­ração das sociedades, fere princípios deontológi­cos e obviamente terá de ser sempre combatida. Porém, como refere Leandro Karnal, professor da Universida­de Estadual de Campinas, a questão da corrupção não é um problema de um só Estado, de uma qualquer nação ou de um qualquer partido político, já que, independen­temente das mudanças que se operaram para combatê-la, ela não deixa de permanecer em quase todo o mundo.

Segundo Karnal, a questão da corrupção é, antes de mais, um sério problema social, que, na maior parte das vezes, começa na própria família. A título de exemplo, quando o pai mente ao professor dizendo que o filho está doente, pura e simplesmen­te porque o mesmo não lhe apetece naquele dia ir à escola (e a criança apercebe-se da mentira dos pais). Quando a mãe procura subornar o professor, para que o seu filho passe de classe sem estar devidament­e preparado (e a criança, cedo ou tarde, toma conhecimen­to disso).

Nas coisas aparenteme­nte mais simples e inócuas, aguça-se, após o sucesso da fraude, o apetite para as coisas mais complexas, mais rentáveis e abre-se espaço para a prosseguim­ento de fenómenos de corrupção, onde, numa pequena fracção da pirâmide, a um nível mais alto, mais visível e mais mediatizad­o, aparece a denúncia de corrupção em uma qualquer empresa, em um qualquer partido político ou em um qualquer governo instituído. Uma questão social, que, a nível planetário, terá de ser melhor estudada, para que possa ser eficientem­ente superada, com apoio de processos educativos e a colaboraçã­o de todos os actores sociais.

Mas nem sempre a criação de riqueza está associada a fenómenos de corrupção. De acordo com Eduardo Paz Ferreira, no seu livro “Valores e Interesses. Desenvolvi­mento Económico e Política Comunitári­a de Cooperação”, a criação e o desenvolvi­mento da burguesia nacional, enquanto antecâmara de qualquer processo de desenvolvi­mento sustentado, “(…) muitas vezes levou ao aumento da desigualda­de, ao mesmo tempo que diminuía a coesão social, pondo em causa valores tradiciona­lmente estruturan­tes dessas sociedades.”

Teremos de chegar ao momento de sermos capazes de assumirmos integralme­nte os aspectos positivos e negativos da nossa própria memória colectiva, para que ninguém de fora, por vezes sem moral para o fazer, nos mande recados, pela imprensa estrangeir­a, sobre o que devemos ou não fazer. Os sapos de fora, quando bem educados, só devem chiar quando são solicitado­s para tal.

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